
Vito Antico Wirgues
Breve conceito dos caminhos entre a paródia e a tradução.
Pode-se dizer que a categoria de textos paródicos são parentes próximos, senão irmãos xifópagos, das categorias do lúdico e do erótico. Assim como a noção de paródia, o estatuto do brincar e do erótico também revelam algo implícito por um lado e simultaneamente ocultam o explícito por outro. É tanto um paradoxo como um exercício dialético; pois pela primeira via é uma proposição que contém a negação do texto parodiado pela afirmação inversa do mesmo, mescla e choque de discursos em um só sistema proposicional; e dialética pela contradição posta entre dois textos em diálogo. É um embate em continuum. Vamos a fala de Flavio Kothe sobre o paródico:
Paródia segundo o étimo, significa “canto paralelo”: é um texto que contém outro texto em si, do qual ela é uma negação, uma rejeição e uma alternativa. Ela geralmente diz o que o outro texto deixou de dizer e insiste no fato de não ter sido dito. A paródia é um texto duplo, pois contém o texto parodiado e, ao mesmo tempo, a negação dele. Ela é, portanto, a síntese de uma contradição, dando prioridade para a antítese, em detrimento da tese proposta pelo texto parodiado. (Kothe, 1980; 98)
Além do paródico, sistema de inversão e carnavalização dos textos, pela via bakhtiniana de pensamento, temos a tonificação do parodístico em linhas síncrono-diacrônicas ao caminho do que chamamos “estilização”, que é um movimento tradutório em que o texto parodiado acaba sendo deixado de lado para que a obra se torne mais polifônica e autônoma em relação ao contexto vivente; Dom Quixote de La Mancha é uma estilização dos romances de cavalaria medieval. Esse movimento entre o paródico e a estilização pode ser dado por níveis derivados dos atos paródicos, ou seja, parodiações contínuas de um texto até o nível de estilização, por atitudes de linguagens dialógicas e relacionais, e posteriormente, aos caminhos da tradução, e por esse motivo, o conceito ao objeto de estudo como paródico-tradutório. Dessa forma, a estilização seria um meio termo entre a paródia (inversão do objeto textual) e a tradução (recriação do código, alteração do código), o que poderia se dar por uma paródia disseminada ou uma tradução direcionada de um determinado texto. Falamos aqui de textos em movimento e vamos além de um gênero literário, a paródia e a tradução tornam-se gêneros de conhecimento nos terrenos latino-americanos, são modos éticos de criação do real.
Kothé nos fala das nivelações entre a estilização e a paródia:
A paródia e a estilização não podem ser vistas como categorias estanques, em que se precisa escolher entre classificar uma obra rigidamente como paródia ou como estilização. Precisam ser encaradas como polos extremos entre os quais obras se situam. Toda obra parodística tem algo de estilização e toda estilização teve que atravessar o percurso da paródia para chegar a ser o que é. A estilização é uma paródia que conseguiu ser uma grande obra de arte, enquanto a paródia é uma estilização que artisticamente não deu certo e se situa, portanto, na parte baixa da pirâmide. (Kothe, 1980; 102)
É importante ressaltar que a dicotomia entre arte maior e menor é discutível a partir de uma visão de mundo em que os binarismos não mais se tensionem pela contradição e exclusão, mas pela inclusão e alteridade, pois, se a estilização e a paródia pertencem ao mesmo plano e polo, e o que há em um deve se passar ao outro em passagem vascular de textos e intenções de discurso, então não há porque definir uma maioridade referente aos gêneros, mas uma continuidade polinizadora dos recursos que um serve ao outro.
A estilização é um modo de alteridade em relação aos textos que se tornam ao ato estilizado; e a parodia age a partir das mesmas ligações diferenciais, porém com a intenção contra ideológica ao texto parodiado mais latente e visível. São interações comunicantes de conhecimento, perpassantes na e pela cultura. Os dois são atos performativos lúdicos e potencialmente eróticos, por lidarem em arena, com a disputa política de espaços através do humor e dos tons rítmicos, pois o paródico, o lúdico e o erótico são conduzidos pela noção de ritmo inacabado, parte material dos discursos que transa os caminhos em gingas navegantes entre gestos, sons e movimentos de linguagem, a um problema de linguagem constantemente perpetuado, como um signo inacabado da paisagem, uma eterna brincadeira, incansável flerte ou uma gargalhada imanente à praça.
O caminho de passagem faz-se desse modo: paródia-estilização-tradução, sendo a tradução responsável pelo alargamento dos conceitos paródicos, como a noção de antítese e dependência ao texto parodiado. Em resumo, o paródico-tradutório, e aqui a estilização como veia de passagem, são elementos que vão desde os elementos semânticos gerais até o jogo mirim dos signos em suas formulações microestruturais, elementos teóricos abordados por Amálio Pinheiro entre as atividades lúdico-culturais e eróticas do cotidiano, em uma estrutura lúdico-erótica, vide o caráter performativo da brincadeira coligada aos movimentos paródicos tradutórios na cultura.
O paródico tradutório e a gambiarra como conceito
Para darmos noção e plasticidade ao conceito paródico-tradutório, vamos a análise de uma foto do ensaio fotográfico “gambiarras” feito pelo artista plástico Cao Guimarães.
Na foto há um homem deitado em um coco, fruto carnoso e tropical. Pela inversão paródica podemos afirmar que o objeto coco foi invertido a partir de um texto parodiado, por algo em que se deita, um travesseiro ou almofada. O coco então seria uma paródia de um travesseiro. Porém, ao darmos conta da imagem, percebemos que o signo travesseiro, apesar de ser o texto base para a paródia do coco, foi traduzido, recriado ludicamente, através do próprio coco. Portanto, nessa esteira, temos duas atividades simultâneas, a inversão paródica do coco como objeto, pois ele adquiriu mais uma significação ao cotidiano, inverteu-se sem contrapor-se, e a tradução do travesseiro em coco, tradução do signo icônico, de acordo com Haroldo de Campos. A contradição e a antítese, nesse caso, não fazem parte do jogo de inversão ao objeto coco, pois esse
não contrapõe com o travesseiro, mas coliga-se em composições de sentido ao signo travesseiro-coco/coco-travesseiro, traduzindo não só a semântica do uso, mas a fisicalidade da coisa. Diz-nos Haroldo de Campos sobre o signo estético.
Signo estético que eu entendia então como “signo icônico” (na acepção do discípulo de Peirce, Charles Morris): “aquele que é de certa maneira similar àquilo que ele denota”. Traduzir a iconicidade do signo implicava recriar-lhe a “fisicalidade”, a “materialidade mesma” (ou, como diríamos hoje, as propriedades do significante, abrangendo este, no meu entender, tanto as formas fono-prosódicas, e grafemáticas da expressão, como as formas gramaticais e retóricas do conteúdo). Estas formas, por definição, seriam sempre formas significantes, uma vez que o parâmetro semântico (o significado, o conteúdo), embora deslocado da função dominante que lhe conferia a chamada tradução literal, termo a termo, não era vanficado (esvaziado), mas, ao contrário, constituía-se por assim dizer num horizonte móvel, num virtual “ponto de fuga”: “a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora” (como eu então escrevi). (CAMPOS; 2011; 17)
É a partir desses conceitos que podemos alargar os sistemas da paródia quando essa se dá nas enunciações da cultura. Chegamos ao paródico-tradutório. À paródia, pelo signo de inversão ao objeto em suas características humorísticas, ao lúdico e erótico; e à tradução, pelas formas inclusas de recriações do signo estético. Esse jogo paródico tradutório, como foi mostrado, ao invés de produzir um jogo dialético onde a antítese teria função superior, poderíamos dizer que a síntese se mantém como conceito central do movimento paródico-tradutório. De outra forma, em resgate e diálogo ao conceito de Massumi, temos a mútua inclusão, em contraposição a proposição lógica do terceiro excluído; ou seja, trabalha-se a noção do terceiro incluído.
Tanto na brincadeira e na política animal, afirmação de Massumi, como nos atos paródicos tradutórios, hipótese aqui apresentada, teríamos o conceito incorporante do terceiro incluído. Mas antes, vamos ao conceito de zona de indiscernibilidade para seguirmos o fio lógico, fala-se da tensão entre o combate e o brincar, o morder e o mordiscar, em uma brincadeira animal entre dois filhotes de lobo:
Onde a modulação imanente e a deformação estilística sobrepõem – isto é, no próprio gesto –, a arena do combate e a da brincadeira entram numa zona de indiscernibilidade, sem que suas diferenças sejam apagadas. São performativamente fundidas sem se confundir. A zona de indiscernibilidade não é uma indiferenciação; em vez disso, é onde as diferenças se unem ativamente. (MASSUMI; 2012; 18-19)
Ao que Massumi segue o trilho, agora, a partir das funções lógicas:
O modo de abstração produzido na brincadeira não respeita a lei do terceiro excluído. Sua lógica é a da mútua inclusão. Há duas lógicas diferentes na mesma situação, e ambas continuam presentes em suas diferenças e têm participação cruzada em suas zonas performativas de indiscernibilidade. Combate e brincadeira convergem – e essa brincadeira resulta em três. Há um, há outro e há o terceiro incluído de sua mútua influência. A zona de indiscernibilidade que é o terceiro incluído não adere à santidade da separação de categorias nem respeita a rígida segregação das arenas de atividade. (MASSUMI; 2012; 19)
Essa lógica propõe-se ao coco, que adquire sentidos e mais sentidos a partir de seus usos. O coco não segue a lógica do terceiro excluído nem participa da contradição, binarismo, privilegiando a antítese; mas segue a logicidade da terceira inclusão e da síntese cultural, que também é tese a partir de outros movimentos paródicos tradutórios.
As palavras de ordem e as negativas cotidianas
Deleuze no texto Palavras de Ordem propõe-se a discutir aquilo que se “ensigna”, ou seja, aquilo que é marcado através de uma ordem; palavra de ordem. Através desse viés teórico chegamos a dois conceitos aos chamados atos de fala: o ilocutório e o performativo.
Para o autor essas categorias das palavras de ordem não seriam apenas dadas aos modos de comando, como “faça isso”, obedeça”, mas teriam a ver com a atividade da linguagem, em seu aspecto redundante, motivo ao discurso indireto livre, e a chamada “função coextensiva da linguagem”, ou seja, as palavras de ordem partiriam dos agenciamentos coletivos de enunciação para que, de fato, a ordem, como obrigação social, pudesse ser efetivada. Conceito esse de palavras de ordem que dialoga com aquele em que propôs Roland Barthes ao fascismo da linguagem: “porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer” (BARTHES, 1997, 16). Deleuze ainda nos diz: “A palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato e do enunciado. Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é ‘necessário’ pensar, reter, esperar” (DELEUZE; 17). Não há, então, apenas um modo de dizer, mas um conjunto de funções em que a palavra, por redundância ao discurso indireto, poderia aos agenciamentos do performativo e ilocucionário: esperar, reter, dizer, exclamar, asseverar, contrapor… São atos de fala perpassantes ao cotidiano.
Dessa forma, à pergunta, seria possível sair desse modus operandi das palavras de ordem e de alguma forma fugar-se daquilo que “ensigna” burocraticamente aos espasmos do cotidiano, através das próprias categorias do performativo e ilocucionário?
Considerando o exemplo do coco um ato de fala, pode-se dizer que através da lógica do terceiro incluído é possível trazer aos objetos do cotidiano não somente aqueles movimentos em que Deleuze afirma ser “necessário” ao dizer, mas as celeridades dos variados usos dos objetos a vida cotidiana e em heterogêneos modos a complexidade. A gambiarra seria então um ato de fala produzido, através de agenciamentos coletivos do ilocucionário e do paródico-tradutório, como alternativa ou movimento de “negativa” aos modos burocráticos de dizer-fazer aos textos, discursos e enunciações. Diz-nos Nojosa ao movimento da negativa, comum às rodas de capoeira:
O jogo de capoeira pode
enfrentar o controle da vida social, como projeto político capaz de não reproduzir e preencher a vida de forma sistêmica a partir de modelos construídos e inventados, como negação dos contratos sociais.
É a partir desse modelo que podemos assistir e incorporar não só as negativas aos corpos viventes, mas as características da gambiarra em seus elementos paródico-tradutórios de saída aos signos digitais à partilha dos ditos signos analógicos, ao lúdico, rítmico e erótico em humor e constância aos cotidianos do Brasil e América Latina. Dessa forma, a paródia e a tradução alargam-se em movimentos éticos, e transportam-se para além dos gêneros literários e recriadores, e alçam a vida como gêneros de conhecimento à vida comum. É o caso do palhaço pipoca, que todos os dias dança aos trilhos da linha 3 vermelha do Metrô de São Paulo. O trecho a seguir foi retirado do livro Nas Esquinas dos Vagões Canibais, livro reportagem sobre os artistas e “marreteiros” (vendedores ambulantes) da linha 3 vermelha do Metrô de São Paulo. Pipoca entra ao vagão e começa o seu discurso em um ritmo acelerado remetente aos repentistas e cantadores populares:
“Se você quiser, vou lhe mostrar, o Rio de Janeiro como igual não tem; se você quiser, vou lhe mostrar, torcida do Flamengo como igual não tem; ÊÊÊÊÊ, meu amigo Charlie… ÊÊÊÊÊ, meu amigo Charlie Brown… As portas apitam ao aviso. A porta se fecha. E a voz cantada logo transforma-se em um texto rápido: Pe-ssoal, pe-ssoal não sou nem um Pokémon mas gostaria da sua atenção principalmente por favor de tudo à minha voz da sua linda e bela educação. Pessoal, meu nome é Willian, meu apelido de palhaço é pipoca/ Eu faço parte de um grupo de teatro onde a gente trabalha em creches asilos e hospitais há dezenove anos sem nenhuma ajuda política ou algum patrocinador a gente vende cartões dos ônibus e algum de nós vem para o trem para o Metrô para arrecadar algumas moedas/ para ajudar a gente com a maquiagem com o figurino, até mesmo o nosso grupo, se você puder ajudar a gente com cinco ou dez centavos está ótimo muito obrigado se não faça como essa senhorita, uma nota de cem uma nota de cinquenta um cheque pré-datado até mesmo a chave do carro ou da moto ou quem sabe do apartamento em Alphaville mas com um sorriso lindo como este o zap também serve, brincadeira, pessoal, só as moedas estará ótimo, mas por favor eu lhe peço… Ressoa um sinal feito campainha:
– Fala, “Raquel”! – exclama Willian.
E uma voz feminina, contundente pela clareza, ecoa no grande silêncio de rumores em que se encontra o vagão.
– Próxima estação, Tatuapé. Acesso à CPTM (ecssex to train searvice).”
Ao discurso de Pipoca, podemos analisar o conceito dos atos de fala paródicos tradutórios, das formas de gambiarra ao texto falado e das palavras de ordem.
Em seu jogo rítmico o texto nos oferece algumas pistas de como Pipoca joga com a vida cotidiana e com as palavras de ordem. Primeiro, aquilo que se mescla e sai das palavras de ordem: o humor em sua fala, a mudança incorporal do vagão para palco improvisado, o jogo de luzes que entram a janela dos vagões, os rumores das conversas que se misturam ao discurso do palhaço. São movimentos do paródico-tradutório, inverte-se o objeto vagão, traduz em palco, incorpora-se as funções do objeto aos modos éticos de usar o objeto. Joga-se com a gambiarra entre a voz e a vida. Por outro lado, às palavras de ordem, burocráticas ao sistema de vida capitalista: Pipoca está ali para pedir dinheiro, tem-se a falta de incentivo e políticas públicas em cultura e arte popular, liga-se a repressão do próprio aparato metroviário, “os guardinhas da estação”, a vigília constante de Pipoca e o fato dele trabalhar registrado como segurança pelas manhãs.
São múltiplos os movimentos que se mesclam à realidade entre as saídas do que “ensigna” e aquilo que, para Deleuze, é redundante ao próprio discurso. Porém, a paródia e o conceito de tradução acabam por delimitar caminhos de “negativa” perante as ordens do próprio cotidiano. Ao cotidiano, sai-se da ordem pela própria ordem. E é através dos conceitos rítmicos, lúdicos e eróticos, mesclados incorporantes entre as palavras de ordem e os movimentos incorporais, que podemos indiciar e começar uma possível fuga acumulativa aos sistemas burocráticos do dia a dia.
BIBLIOGRAFIA:
DELEUZE, G. Mil Platôs Vol. 2. Editora 34.
MASSUMI, B. O que os animais nos ensinam sobre política. N-1 Edições. 2014
HAROLDO, C. Da Transcriação Poética e Semiótica da Operação Tradutora. FALE. 2011.
KOTHE, F. In: Paródia e Cia. Sobre a Paródia. Tempo Brasileiro. 1980.
NICOLESCU, B. (1999). O Manifesto da Transdisciplinaridade. Tradução Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: TRIOM.
NOJOSA. U. N. Negativa, arte de viver… In: Algazarra. 2017.
PINHEIRO, A. América Latina: Barroco, Cidade, Jornal. Sâo Paulo: Intermeios. 2013