Alberto Manguel em seu livro “A cidade das Palavras: as histórias que contamos para saber quem somos” traz uma reflexão sobre o poder da nossa capacidade de construir identidade, narrando o imaginar da vida em comum, como histórias de nossas memórias, bibliotecas de nossas vidas, “sob certas condições, as histórias podem vir em nosso socorro. Elas podem curar, iluminar, indicar o caminho.”
As histórias têm a capacidade de alimentar o conhecimento sobre quem somos ou como queremos existir, sempre numa relação de confronto com a voz alheia, sempre buscando um reconhecimento dos outros que nos percebem a partir de uma percepção mútua de criadores de histórias. Essa capacidade narrativa faz com que o conhecimento vicário seja transmitido de memória em memória, como uma percepção da realidade.

Esse artífice das palavras trama um entrelaçar de linguagem capaz de construir o mundo material. Por isso, devemos sonhar histórias, contar histórias, redigir histórias, ler histórias.
Para Walter Benjamin, em Experiência e Pobreza, os soldados que voltavam da guerra de trincheira foram marcados por um silencio profundo dessa experiência. A experiência de guerra. Experiência do terror!
O silenciar trazia o espelho da desmoralização ética das experiências coletivas dos soldados em suas trincheiras. Segundo Benjamin, “porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheira, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes,” (Benjaminn, 1996, pág. 115) Enfim, registrar que na experiência da guerra a humanidade empobrece, pois a barbárie impõe uma condição traumática da pobreza de experiências virtuosas e éticas.
A experiência e pobreza da guerra revela as histórias de horror, que ficam marcadas na consciência, memória e no corpo. Esse corpo torna-se a memória da experiência da guerra, o território das marcas da violência, que não cicatrizam…. Feridas abertas! Deserto territorial do corpo, com o silêncio abissal.
O corpo torna-se a memória dessa experiência histórica de violência e terror.
Não existe o domínio territorial sem o domínio do corpo.
E a leitura do corpo torna-se a chave de identificação capaz de criar uma cartografia do poder de acordo com Manoel Fernandes:
“o território do corpo é uma carta – no sentido mesmo cartográfico – a anunciar uma série de experiências que foram sendo impressas ao longo do tempo e das quais nem sempre se pode fugir ou apagar. Há certas cicatrizes que não podem ser banidas do tecido epidérmico e mesmo sob os escombros do esquecimento, permanece contando e atualizando. O corpo é nesse sentido, uma carta palimpsesto…[ ] Há marcas, as mais comuns a todos, que são geracionais que se inscrevem no território corporal ao longo dos anos, como resultado de um processo natural de corrupção e ao qual se pode adiar cada vez mais, nos dias de hoje, porém nunca de maneira definitiva.”
As considerações desse corpo palimpsesto também pode ser visto como repositório de informações sobrepostas em espaço/temporais marcados mesmo nos corpos mortos, nas ossadas das valas comuns em cemitérios, jardins e terrenos baldios. Lugar comum.
A ditadura militar impôs a lógica do desaparecimento dos corpos, pois sabe que não podemos comprovar a existência da morte sem presença do corpo/cadáver. Por isso, o ato de fazer desaparecer corpos faz com que os familiares não cessem o seu sofrimento, pois o luto se torna uma cicatriz aberta.
Um luto patológico em que freia o movimento da vida, pois a dor entra numa espiral crescente, tornando-a um desesperançar.
Um oco do mundo que nunca fecha.
As análises das ossadas de Perus terminam após 32 anos, identificando pelo menos quarenta desaparecidos políticos que foram executados pelo grupo Esquadrão da Morte. A vala comum foi descoberta em setembro de 1990. Ao todo são 1049 ossadas de pessoas perseguidas pela ditadura militar de 1964 a 1985.
De acordo com a convenção interamericana sobre desaparecimento forçado de pessoas considera como um delito de lesa humanidade imprescritível. Definindo nos seguintes termos:
É considerado desaparecimento forçado a privação da liberdade a uma ou mais pessoas, seja como for a sua forma, cometida por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com a autorização, o apoio ou a aquiescência do Estado, seguida da falta de informação ou da negativa a reconhecer dita privação de liberdade ou de informar sobre o paradeiro da pessoa, com o qual é impedido o exercício dos recursos legais e das garantias processais pertinentes.
Diante desta convenção, o desaparecimento de corpos traz a ideia do homo sacer do nosso tempo, levando-nos a resgatar o Decreto Nascht und Nebel que textualmente expressava a ordem de Hitler nos seguintes termos:
“Uma intimidação efetiva e duradoura apenas é lograda por penas de morte ou por medidas que mantenham os familiares e a população na incerteza sobre a sorte do réu” e “pela mesma razão, a entrega do corpo para o seu enterro no seu lugar de origem, não é aconselhável, porque o lugar do enterro poderá ser utilizado para manifestações… Através da disseminação de tal terror toda disposição de resistência entre o povo, será eliminada.”
O aspecto de que “a entrega do corpo para seu enterro no seu lugar de origem, não é aconselhável” demonstra que o corpo mesmo morto continua a fazer a política de resistência, como um testemunho da história, uma marca capaz de trazer uma presença histórica.
Esse fato das ossadas de Perus lembrando-nos do filme The Fast Runner em que para os povos inuítes o aqui é uma identificação coletiva com uma comunidade, o aqui é onde as pessoas se reúnem para comer, dormir, fazer amor e falar. É um aqui relacional, por isso, enquanto estivermos juntos, nunca estaremos perdidos, pois, sempre estaremos aqui. Perus está aqui…
CONSELHO EDITORIAL
Urbano Nojosa