MANUELA AVANSO MAGALHÃES SOUSA BRANCO
JORNALISTA
ros fatores e causas multidisciplinares que envolvem questões culturais, sociais, psicológicas e individuais. Sobre abandono paterno não seria diferente, visto que também perpassa diversas esferas sociais e comportamentos de gênero, assim como contexto social e até mesmo do trabalho. Sendo assim, este capítulo destrinchará os inúmeros aspectos que envolvem o assunto.
No artigo ‘Paternidade em tempos de mudança, Ana Cristina Staudt e Adriana Wagner defendem que o abismo de disparidade existente entre as funções desempenhadas por homens e mulheres na sociedade justifica que o homem atue apenas como provedor financeiro aos seus filhos e não se ocupe das outras tarefas referentes ao cuidado afetivo da criança. Fala-se muito sobre o crescimento da participação feminina na esfera pública e sua entrada no mercado de trabalho, no entanto, a inserção do homem na esfera privada não ocorreu na mesma proporção mesmo que tenhamos tido um aumento no número de homens que desempenham tarefas domésticas e cuidado aos filhos.
Sobre o assunto, Staudt e Wagner assim pontuam:
…é importante salientar que o crescimento da participação feminina na esfera pública não é proporcional ao crescimento do homem na esfera privada, ainda que existam muitos homens desempenhando tarefas domésticas e de cuidado com os filhos. Historicamente, a tarefa de cuidar tem sido associada ao gênero feminino, aspecto certamente reforçado socialmente com o fato da gravidez e da amamentação. Por outro lado, a paternidade não passa por esse mesmo processo, definindo-se por meio de uma construção cultural e social bastante identificada com esse determinismo biológico do gerar e do amamentar. Mesmo que atualmente o pai pareça estar assumindo um papel mais participativo na vida dos filhos, as crenças e valores presentes no imaginário social não se transformam abruptamente. Concomitantemente a essa demanda de um homem mais presente na vida privada, observamos que ainda persiste no senso comum a vinculação da maternidade a uma aura idealizada, diferente da paternidade. As mulheres acabam assumindo a tarefa de corresponder a esse papel idealizado que culturalmente lhes é imposto, e que acaba fazendo parte daquilo que elas mesmas acreditam. (STAUDT; WAGNER, 2008)
Isso se refere ao fato de que a ausência paterna ocorre por vezes porque as demandas externas daquele pai não são suficientes para se sobrepor ao cuidado integral ao seu filho ou filha.
Visto desse modo,o abandono não é simplesmente um ato maldoso por si só, ele se encaixa em uma estrutura social que normaliza tal comportamento.
O ideal de paternidade paira o imaginário de muitos pais que entendem que apenas sendo o pai provedor e com boas condições financeiras de arcar com os custos e com o sustento da família poderão exercer a paternidade digna. Sobre essa questão, Claudia Fonseca, em seu artigo “A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA” expõe:
Muitos, sem emprego fixo e sem dinheiro para cumprir seu papel de provedor, não conseguem realizar a contento o modelo de pai/marido ‘antigo’. Outros, mesmo tendo renda suficiente para cumprir com o dever financeiro, não sabem lidar com os modelos ‘novos’ de comportamento – do casal igualitário e da mulher independente. A ambivalência que o homem sente em relação à paternidade faria parte de um quadro geral da chamada ‘crise de masculinidade’. (FONSECA, Claudia. A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA. Scielo, 2004.)
Apesar de existirem casos em que a mãe é quem promove o abandono,não ocorre na mesma frequência,visto que o lugar dado a mulher socialmente é o do cuidado, e quando ocorre, torna-se algo muito mais condenável culturalmente.
Segundo a Central de Informações do Registro Civil, até a metade do ano de 2020, houveram 1.280.514 registros de nascimento de crianças no Brasil; deste número,mais de 80 mil delas possuíam apenas o nome da mãe na certidão de nascimento; esse número corresponde a 6,31% dos registros. Em 2018, 5,74% dos registros de nascimento não tinham o nome do pai e em 2019, essa porcentagem subiu para 6,15%.
Para registrar uma criança, é necessário que o pai (se por espontânea vontade reconhecer o filho) compareça a um cartório e se declare pai daquela criança. Caso não haja vontade espontânea deste pai de reconhecimento do filho, a mãe pode dizer quem é, sendo possível que este homem seja chamado para ver se quer reconhecer a criança. Segundo a advogada Iris Lippi, neste caso, a genitora pode comparecer a qualquer Cartório de Registro Civil e indicar o suposto pai do filho menor, o Juiz mandará notificá-lo para que se manifeste sobre a paternidade que está sendo apontada, propondo uma ação de reconhecimento de paternidade. (LIPPI, 2021, entrevista nossa).
A sociedade contemporânea valoriza intensamente o ideal de liberdade individual, segundo o qual tudo tende a ser substituível, descartável, inclusive os relacionamentos.
Quando trazemos a questão para o ponto de vista da geração de filhos e responsabilidade paterna, isso torna-se problemático,visto que a criação de uma pessoa depende de muitos aspectos e de cooperação de ambas as partes. Numa visão mais geral, os modelos de subjetivação que seguem os relacionamentos atuais levam os indivíduos a acreditarem não necessitar de seus pares para a realização de seus desejos, já que a autossuficiência se mostra mais intensa nesse sentido. Essa questão somada ao imaginário coletivo e as construções sociais de gênero,papéis criados socialmente às mulheres e aos homens, traz consequências ainda mais graves , visto que mulheres são naturalmente criadas com o desejo de maternidade e homens adquirem consciência de independência desde a infância.
Ao longo da formação social dos indivíduos, ocorre a internalização de diferentes modelos de relação entre gêneros e, quando adultos, são confrontados com prescrições e demandas sociais conflitantes entre ter filhos no “tempo biológico” e arcar com prejuízos financeiros, ou trabalhar excessivamente para garantir o futuro provimento familiar. Paradoxo que afeta a construção da parentalidade e dos modelos de família na atualidade.
A miscigenação construída a partir da colonização brasileira também é fator fundamental na problemática do abandono na cultura. A fundação da sociedade brasileira se deu a partir do estupro praticada pelos portugueses contra as mulheres negras e índias que aqui habitavam. Segundo Darcy Ribeiro, as crianças nem brancas, nem negras e nem índias, frutos desta violência foram nomeadas de “Zé Ninguém”. (ROBERTA, Tainá; MAGALHÃES, Victória, 2007)
Indivíduos que não tinham nem identificação social e nem afetiva, deixando como consequência uma herança cultural de filhos sem pai.
Constitui-se deste fato, uma sociedade que tem em sua base a ausência paterna.
Somado a isso, a ideia de que a figura paterna apenas “ajuda” a mãe nos cuidados afetivos e provém financeiramente,mas não assume efetivamente a mesma função quanto ao cuidado e formação dos filhos.A estrutura sócio-histórico-cultural de determinada sociedade permeia a vida de homens e mulheres e provoca efeitos no pensar e do agir como pai e mãe.
Outra questão a ser pontuada diz respeito à ideia de que a mulher já nasce preparada para a maternidade, como discorre Elizabeth Badinder em sua obra “O mito do amor materno” (BADINTER, 1980). Ao longo da obra, são discutidos os aspectos culturais que colocam a mãe no papel de um ser capaz de desenvolver o amor puro e inato pelo filho sem muitos esforços, simplesmente por ser inato à natureza feminina. Tal ideia, cria uma disfunção social que opõe os papéis masculinos e femininos, destinando o espaço privado à mulher e o público ao homem. A construção desses espaços no imaginário coletivo cria comportamentos que tendem a se repetir ao longo das gerações e destinar papéis exclusivos aos gêneros. O mito do amor materno, na visão de Elisabeth Badinter representa além do amor incondicional, uma figura essencial da alimentação e fortalecimento do bebê em seus primeiros anos de vida. “A devoção e presença vigilantes da mãe surgem como valores essenciais, sem os quais os cuidados necessários à preservação da criança não poderiam mais se dar.” (MOURA, Solange, 2004)
Consequentemente a isso, ampliam-se as responsabilidades maternas e a valorização do papel mulher-mãe.
Para Badinter, a maternidade como papel intrínseco à mulher, como função feminina por excelência, deve-se muito mais a uma transposição social e cultural das suas capacidades de dar à luz e amamentar. O papel materno deve sempre ser considerado de forma relativa e tridimensional, sem que se possa compreender suas mudanças sem fazer referência aos demais membros do microssistema familiar (pai-mãe-filhos). Quando defende que:
Sem dúvida esse pai ausente, silencioso, despojado de todas as suas antigas prerrogativas é uma imagem caricatural da decadência paterna. Essa situação extrema, porém, é a expressão mais brutal da inversão da condição do pai. (BADINTER,1980, p.212)
Bartinder afirma que o “homem foi despojado de sua paternidade” durante boa parte dos séculos, tendo sua participação restringida somente à função econômica e distanciada das obrigações afetivas e sentimentais da família:
Fisicamente ausente durante todo o dia, cansado à noite, o pai não tinha mais grandes oportunidades de se relacionar com o filho. Tudo parece indicar, contudo, em nossa sociedade regida por homens, que essa privação não se realizou sem a aquiescência das próprias vítimas. Que pai teria gostado de trocar sua condição com a da mulher? Mas também que homem teria ousado questionar a divisão familiar do trabalho e a distinção adquirida dos papéis paterno e materno? (BADINTER,1980,p.212)
Na Antiguidade e na Idade Média estava mais presente o poder paternal sobre os filhos e a esposa, fato que até o século XVIII culminou na autoridade incontestável do pai dentro da família, ou seja, a condição da esposa equiparava-se à da criança sendo ela submissa à autoridade paterna. Não se consideravam necessários os laços de afetividade e o casamento era na maior parte das vezes realizado por contrato, seguindo as necessidades econômicas e alianças políticas.
Após 1760, houve a exaltação ao amor materno como um valor natural e social que colocava a mulher na posição de cuidadora da prole. Esse fato, Articulado aos interesses econômicos do Estado, reforçou a necessidade de a mulher ocupar-se com os filhos; com o argumento de que essa seria a forma natural e adequada de cuidados com a criança, uma vez que só a mulher era capaz de gestar e parir e que por esse motivo conferia à natureza feminina os cuidados familiares.
A mulher passou então a assumir o papel de educadora, além da função de nutrir a criança, aumentando suas responsabilidades e a valorização do devotamento e do sacrifício feminino em prol dos filhos e da família. Isso causava nas mulheres a sensação de culpa quando se afastam deste ideal de maternidade, visto que contrariava a natureza, e poderia ser considerado um desvio ou patologia. Segundo Elizabeth:
Essa imagem do bom pai mantenedor, responsável pelo conforto da família, sobreviveu até os nossos dias. Mas ele se mata de trabalho, tendo o cuidado de levar pontualmente todo o seu ganho para casa, mais o seu valor é reconhecido. Os filhos e a casa são para ele apenas uma preocupação indireta. Desde que proporcione meios para o funcionamento dessa pequena fábrica, pode calçar tranquilamente os chinelos, esperando que a sopa lhe seja servida. Esse pai viveu, durante décadas, satisfeito, seguro de ter cumprido sua parte. E como não a teria cumprido se não lhe pediam nada mais que ser um bom trabalhador que volta ajuizadamente, todas as noites, para casa? No máximo esperava-se dele que elevasse a voz, à noite, contra o menino teimoso, ou que felicitasse o aluno estudioso. (BADINTER, 1980, p.212).
O papel do filho bem como o papel de mãe são frutos das práticas sociais e assim como não é natural à mulher os cuidados maternos ou as funções atribuídas como tipicamente femininas, não é desvio ou patologia a condição da mulher que se nega a ser mãe ou que renuncia ao papel de mãe. Segundo Badinter (1985) o amor materno é um comportamento social e variável de acordo com a época e os costumes:
O amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento, é incerto, frágil e imperfeito. Contrariamente aos preconceitos, ele talvez não esteja profundamente inscrito na natureza feminina. Observando-se a evolução das atitudes maternas, constata-se que o interesse e a dedicação à criança se manifestam ou não se manifestam. A ternura existe ou não existe. As diferentes maneiras de expressar o amor materno vão do mais ao menos, passando pelo nada, ou o quase nada. (BADINTER, 1980, p.14).
A mudança familiar histórico-cultural ocorreu ao longo dos séculos e se tornou motivo de estudos em diversas áreas, a mudança no contexto e as transformações sociais, porém, não tiraram o papel essencial dessa estrutura. Como afirmam Ana Cristina Belizia Schlithler, Mariane Ceron e Daniel Almeida Gonçalves:
A família como instituição tem sido extensamente debatida por muitas áreas do conhecimento. Suas funções passam por mudanças significativas ao longo da história. O próprio conceito de família modifica-se histórica e culturalmente. Contudo, sua importância e seu papel essencial permanecem (SCHLITHLER, Ana Cristina Belizia; CERON, Mariane; GONÇALVES, 2018)
Ao longo dos anos, a estrutura de família tradicional formada exclusivamente por um pai e por uma mãe foi se dissipando em razão das novas imposições da sociedade globalizada e integrada. O divórcio passou a ser cada vez mais comum,somado à inserção da mulher no mercado de trabalho, criou arranjos novos de famílias. As funções antes cumpridas exclusivamente pela mãe foram dissipadas e compartilhadas com cuidadores,avós,pais e creches. Com isso, a figura do pai começou a se inserir mais no contexto familiar e sua participação passou a não ser mais somente financeira e provedora,mas atuante no cuidado afetivo.
Além disso, o capitalismo proporcionou que a mulher branca se inserisse no mercado de trabalho. Fato que,apesar de representar um avanço, não provocou na mesma medida que os homens tomassem para si as tarefas do espaço privado, como cuidado dos filhos e do lar; consequentemente deixando a mulher assumir uma dupla jornada.
O sistema patriarcal colocou a mulher no papel de subjugação em relação à figura masculina e a construção das relações parentais seguiu o modelo de organização com normas internalizadas pelas pessoas por gerações e gerações, e consideradas, com freqüência, naturais e inatas, acabando por fazer parte do imaginário social.
A forte herança do patriarcado ainda pesa nas ações dos homens contemporâneos,mesmo com todas as mudanças implementadas nos modelos de família e masculinidade a partir do século XX. Isso porque o crescimento da participação feminina na esfera pública não foi proporcional ao crescimento do homem na esfera privada, fazendo com que os papéis de maternidade e paternidade ainda sejam pautados em ideais dos séculos anteriores. O determinismo biológico do gerar e do amamentar ainda é usado para deslegitimar a participação paterna e por vezes usado para justificar o abandono paterno.
A desresponsabilização paterna diante do envolvimento com os filhos acaba sendo compartilhado e incentivado pelas próprias mulheres e pela sociedade em geral.
As posições conflitantes em que homens e mulheres assumem ao longo de suas vidas é resultado de uma sociedade que os trata de maneira oposta, isso é perceptível quando se criam homens para que tenham a personalidade agressiva, virilidade e força, e as mulheres para atuarem como meigas, cuidadosas. Homens quando vão exercer sua paternidade e os cuidados de um filho, se veem em conflito com a masculinidade imposta e ensinada ao longo de suas vidas.
No âmbito da lei, essa diferença também é notada, visto que nas Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) as licenças-maternidade e paternidade são completamente diferentes, deixando ao pai somente 5 dias.A guarda dos filhos em processos de separação conjugal também ilustra esse fenômeno,nas quais há primazia materna no cuidado e proteção dos filhos.
Mudanças nas responsabilidades de homens e mulheres irão criar uma nova demanda de expectativas, crenças e atitudes sobre como homens e mulheres deveriam fazer no contexto de família.
Segundo Thurler, a ordem sexual patriarcal no Brasil funciona de modo que os pais podem escapar da paternidade indesejada, as mães estão condenadas a ela, ocorre uma naturalização do abandono paterno sem que aja um peso pra esses pais que “escolhem não ser pais”, em contrapartida, há um tabu enorme entorno do aborto. Filhos indesejados podem aparecer na vida de homens e mulheres em qualquer idade da vida, mas a natureza da dominação masculina no Brasil é revelada pelo que ocorre depois que eles aparecem. Como defende Ana Liési, todos deveriam ter o mesmo direito de ter os filhos que desejam quando desejam, mas a estrutura do controle da reprodução no Brasil faz com que o caminho da deserção da paternidade fique aberto aos homens (THURLER, Ana Liési, 2006).
Como afirmou em entrevista ao site Pai Legal , Thurler afirma que o não reconhecimento da paternidade é uma prática não-democrática e sexista, herança de uma época em que o patriarca controlava sua descendência acolhendo ou repudiando os filhos, arbitrariamente. O pai desertor não é uma questão pessoal e individual, ele é construído por meio do jogo de relações sociais que construímos e naturalizamos, e podemos também coletivamente desconstruí-lo e desnaturalizá-lo.
No Brasil a maternidade é quase compulsória para quem engravida, está no imaginário coletivo que trata-se de um desejo que é concebido como intenso o suficiente para o sacrifício de muitos outros. Sobre o assunto, Thurler discorre:
A possibilidade para outros horizontes para a paternidade a para a parentalidade no masculino e no feminino demanda universalização dos direitos reprodutivos, com políticas de reconhecimento da autonomia das mulheres em questão de procriação e superação da misoginia e do sexismo, que se expressam, privilegiadamente, no controle da sexualidade das mulheres. (THURLER, Ana Liési, 2006)
A deserção da maternidade é considerada comumente uma atrocidade, uma aberração e um ato contra a natureza. É a ditadura do instinto materno, ao lado do caráter fugidio de qualquer instinto paterno. Este cenário se liga à grande importância dada ao exame de DNA, o sistema de registro desconfia da paternidade apontada pela mãe e é necessário sempre algum outro teste é necessário para que a paternidade seja estabelecida.
Para driblar a situação se faz necessário que seja feita uma universalização efetiva dos direitos das crianças e generalização dos direitos reprodutivos.
Pode-se citar outra questão intimamente ligada à deserção paterna, como cita Ana Liési Thurler:
A deserção da paternidade surge como um tema que aponta para o peso que a proibição e criminalização do aborto têm na estrutura da dominação masculina. Se os homens tivessem o direito de decidir com suas parceiras que filhos teriam, as rotas para escapar da paternidade não teriam todas essas linhas sinuosas que envolvem as leis, as práticas e a imaginação de uma sociedade em que a maternidade se tornou compulsória e a paternidade assumida gota a gota. (THURLER, Ana Liési. OUTROS HORIZONTES PARA A PATERNIDADE BRASILEIRA NO SÉCULO XXI?. Scielo Brasil, [s. l.], v. 21, 6 set. 2006.)
A deserção da paternidade se configura como um fenômeno socialmente construído por vias históricas, políticas e jurídicas, com base na questão da cidadania e relações de gênero (Liési,2006). A discrepância no julgamento do cuidado paterno e materno dado pela imprensa e pela opinião popular, escancaram uma questão patriarcal e promovem uma legitimação da falta de cuidado dos trabalhos parentais dos homens e a normalização de expressões como “pai não sabe mesmo cuidar de criança”, “mulher é que tem instinto materno” e outras ditas popularmente. Em contrapartida, temos a criminalização do aborto e julgamento severo de mulheres que escolhem tirar seus filhos quando ainda estão em seu ventre, ato tido como uma ação de alguém cruel e imoral. Às mulheres que escolhem não ter filhos é destinada repulsa social, enquanto aos pais é quase natural a aceitação da escolha de não serem pais, como se isso fosse possível.
A atitude de um pai de não reconhecer um filho ou filha provém de um cenário de resistência cultural que reforça o hetero patriarcalismo, sistema sociopolítico no qual a heterossexualidade cisgênera masculina se sobrepõe às demais identidades de gênero. Em outras palavras, há um reforço da estrutura da família tradicional, que quando rompida, dá margem ao não-reconhecimento paterno. Pode-se citar esta questão intimamente ligada à sistema sociopolítico no qual a heterossexualidade cisgênero masculina, como cita Ana Liési Thurler:
Uma legislação ainda androcêntrica, em meio a contradições, em última instância, preserva o velho princípio exposto em nosso primeiro Código Civil, mantido nas entrelinhas do segundo: o pai é o marido da mãe. (THURLER, Ana Liési. OUTROS HORIZONTES PARA A PATERNIDADE BRASILEIRA NO SÉCULO XXI?. Scielo Brasil, [s. l.], v. 21, 6 set. 2006.)
Ainda segundo a autora, o direito reprodutivo das mulheres entra em questão ao avaliar a subordinação de sua vivência de sexualidade, reprimida quando ocorre fora da condição de reprodução de filhos, caracterizando uma violência sistêmica. O controle da sexualidade das mulheres se dá por meio do campo das questões reprodutivas de contracepção, aborto e esterilização – colocando as possibilidades e os limites de um efetivo reconhecimento da liberdade reprodutiva.
Dito isso, entende-se que a construção de paternidade e maternidade transpassa inúmeros conceitos sociais e culturais que criam no imaginário coletivo cenários construídos a partir de muitas percepções.
1.1: Questão cultural
A revisão de papéis do homem e da mulher que ocorreu ao longo da história se deu por meio da inserção da mulher na esfera pública e o crescente envolvimento do homem na esfera privada. Até o século XIX, a presença do pai na criação dos filhos não era dita como significativa,de modo que apenas o cuidado da mãe era valorizado e necessário para a sobrevivência do indivíduo,principalmente em seus primeiros anos de vida.
Fruto disso é a falta de estudos sobre a importância paterna na vida do filho pelas áreas da psicologia. A figura do pai, tanto culturalmente quanto psicologicamente era somente tida como aquele que precisa prover à família; se limitando somente ao trabalho externo (Bernardi,2017).
Como pontua Denise Bernardi:
O pai era o provedor financeiro da família e tinha um poder inques¬tionável. Os cuidados com a casa, a comida, e os afazeres domésticos eram garantidos pela mulher (Ceccarelli, 2007). Neste período o homem repre-sentava a lei, que era legitimada por códigos de dominação e submissão. Nesse modelo familiar o pai era considerado o senhor absoluto e tinha o poder de decisão sobre a mulher e os filhos. O exercício da paternidade e as questões ligadas ao afeto e ao cuidado, por sua vez eram menos valorizadas. (BERNARDI,2017, p.62)
A mudança socio estrutural colocou o pai na posição daquele que também cuida, quando a mulher começou a ocupar o mercado de trabalho, houve a urgência na divisão de tarefas, embora a carga maior ainda recaísse sobre a mulher.
A ausência paterna foi um fenômeno construído socialmente visto que as famílias tradicionais dos séculos XVI, XVIII e XIX não tinham o pai como figura participativa no cuidado. Isso se explica inclusive pela quase inexistência de homens em profissões como cuidador, professor e outras que envolvem cuidados com terceiros. O afastamento da figura paterna no universo infantil se moldou de tal forma que o pai era apenas o provedor financeiro, a figura de autoridade na família, se afastando cada vez mais do cuidar e ganhando uma face fria e sem sentimentos; estes eram somente proferidos pela mãe -figura mais relevante no amadurecimento da criança.
A construção da mãe como figura central na consolidação psíquica dos filhos foi resultado de uma produção psicanalítica de muitos anos que somente essa relação era estudada e debatida como essencial à sobrevivência da criança. A partir de 1970 começaram a surgir incipientes estudos sobre a presença do pai na relação com seus filhos e o modo como essa relação determinava muitos aspectos da psique do indivíduo. Antes disso, porém, era raro encontrar investigações que mostrassem essa importância paterna.
Sobre isso, Denise Bernardi afirma:
O afastamento da figura masculina como fonte de cuidado pode ter levado ao longo dos anos as teorias psicológicas a se dedicarem a estudar, com maior ênfase, a interação da mãe com seu filho. Deste modo, até as décadas de 1960 e 1970 os estudos sobre o desenvolvimento infantil não incluíam o pai, responsabilizando a mãe pelo sucesso ou fracasso no desen¬volvimento dos filhos. (BERNARDI, 2017, p.64)
Esse aumento dos estudos da função do pai fez com que, juntamente com o desenvolvimento histórico e a revisão dos papéis de gênero, o pai de hoje em dia se mostre mais participativo efetivamente na criação de sua prole, embora ainda que numa proporção menor que a mãe.
As relações de gênero e os papéis pré-estabelecidos socialmente por homens e mulheres são determinantes no modo como se comportam os indivíduos quando adultos. A socialização feminina é um claro exemplo de como o papel da mulher no cuidado dos filhos é evidenciado desde os primeiros anos de sua vida; no ambiente familiar, escolar e social existe um forte estímulo para que o cuidado esteja presente na postura das meninas(Lyra et al., 2015). Esse aspecto se evidencia nas brincadeiras de boneca, que por sua vez são desestimuladas aos meninos e vistas como um comportamente passível de torná-lo homossexual. O reforço dos papéis de gênero cria padrões de comportamento culturais que serão perpetuados nas relações dos adultos, as mensagens passadas através das brincadeiras e jogos infantis definem no subconsciente do indivíduo o que é ser homem e o que é ser mulher; e com o reforço do afeto e do cuidado na infância das meninas constrói-se uma ideia de é somente a elas que esse aspecto é destinado.
Assim, percebe-se que desde criança através das brincadeiras infantis o cuidado é estimulado como uma tarefa intrínseca de natureza feminina. Em contrapartida, parece que historicamente o homem não foi como um sujeito capaz de exercer a tarefa de cuidar de uma criança. Caso necessitasse cuidar dos filhos, acreditava-se que o pai não cuidaria tão bem quanto a mãe, pois ele não possui instinto para tal. (BERNARDI, 2017, p.68)
Entretanto, a entrada da mulher no mercado de trabalho e a ocupação do espaço externo por elas não retirou a carga das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos, nem mesmo a divisão igualitária com os homens, como aponta por diversos pesquisadores na atualidade.
Ainda segundo Bernardi:
O perfil das trabalhadoras, mais velhas, casadas e mães revela que a identidade feminina está voltada tanto para o trabalho como para a família. A permanência da responsabilidade feminina nos afazeres domésticos e cuidados com os filhos indica a continuidade de modelos familiares tradicionais, que sobrecarregam as mulheres atuais, sobretudo as que são mães de filhos pequenos (BERNARDI, 2017, p.68)
No fim dos anos 90, com a descoberta do teste de DNA, além de tornar possível saber com certeza o pai da criança sem precisar de uma investigação moral da vida da mãe, a comprovação da paternidade permitiu que ela fosse exercida e reforçada quebrando a atitude tradicional da irresponsabilidade masculina. Com o passar do tempo e o aumento dos estudos sobre paternidade tanto na literatura quanto na psicologia e sociologia, está sendo possível construir uma “nova paternidade” em que o pai também atua no cuidado e não somente provendo financeiramente a família. Segundo Denise, essa questão permitiu a ressignificação das possibilidades de cuidado e envolvimento mais ativo do pai desde o nascimento da criança,promovendo uma revisão de funções.
Embora ainda existam muitos desafios estruturais para que o pai seja melhor inserido no cuidado igualitário, os tempos de licença de paternidade e maternidade são um exemplo já citado neste capítulo. As diferenças de tempo que uma mãe,por lei, pode se dedicar ao cuidado de seu filho e um pai são discrepantes no Brasil; prática que evidencia o cuidado como uma tarefa somente materna. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2009), “a licença-paternidade é fundamental para que o papel dos homens em relação às responsabilidades familiares e à prestação de cuidados seja promovido e reconhecido”.
Sendo assim, a licença à paternidade é de fundamental importância para a mudança de comportamento social dos pais em relação ao cuidado dos filhos, além de sinalizar um reconhecimento dos homens como sujeitos de direitos no exercício das responsabilidades familiares e na possibilidade de conciliar trabalho e família. Como consta no capítulo de trabalho e família da Declaração Internacional do Trabalho:
(…) para alcançar a plena igualdade entre homens e mulheres, é necessário modificar o papel tradicional tanto do homem quanto da mulher na sociedade e na família; Preâmbulo da Convenção sobre trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares, 1981 (nº 156). (OIT,1919)
Torna-se necessário criar medidas legais e estruturais que incluam homens nas medidas de apoio a responsabilidades familiares, promovendo assim a diversidade de arranjos familiares existentes.
Denise Bernardi também aponta que a participação dos pais ainda é atravessada por diversas dificuldades, estruturais, institucionais e legais, que são originárias da memória cultural dos papéis de gênero.
A mudança no lugar paterno dentro do conjunto familiar e a alteração das responsabilidades tanto maternas quanto paternas promoveram transformações não somente na esfera privada da família, mas também socialmente.
Atualmente ser pai deixa de ser apenas um dever a ser cumprido. Ser pai, e estar mais presente na rotina dos filhos, para alguns homens deixou de ser uma obrigação, podendo ser considerado um direito a ser exercido pelos homens. (BERNARDI, 2017, P.74)
Mas vale ressaltar que as antigas concepções de que é somente a mãe a responsável pelo cuidado da família e que existe uma predisposição feminina a se dedicar mais aos filhos ainda estão presentes no imaginário coletivo e as mudanças são incipientes. As antigas narrativas conservadoras do papel de pai e mãe dentro do núcleo familiar parecem ainda permanecer socialmente.
A pesquisa de investigação feita pela Escola Superior de Enfermagem da Universidade de Coimbra mostrou as diversas faces do cuidado e como se organizavam os membros do casal na criação e no cuidado de filhos de até 6 meses. Uma das descobertas do estudo foi que muitas vezes as mulheres se apropriam dos cuidados intensivos com a criança, consequentemente afastando o pai desta função, ao considerá-los menos competentes e mais despreparados durante o puerpério. Fato que caracteriza na maior parte dos casais estudados, uma invisibilidade natural do homem no cuidado dos filhos e a separação entre cuidar no feminino e no masculino (ARAÚJO et al., 2014).
Desta forma, os autores ressaltam:
Assumindo cuidados no masculino ou feminino traduz a ideia de que ser pai ou ser mãe reproduz maneiras de agir, fazer e pensar associadas ao ser homem ou ser mulher, como partes interligadas e quase que indistintas da experiência de cada progenitor. As mães assumem-se como principais cuidadoras dos filhos e sentem satisfação ao fazê-lo e ao receber ajuda dos maridos, e os homens desempenham um papel secundário, como que de apoio à mãe, a que associam funções de ajuda, assistência, zelo e provisão material. Para a mulher, assumir-se como prestador principal de cuidados abarca a esfera do entregar-se ao processo de aprendizagem que entende ser a maternidade, para poder ser uma mãe competente, que ama, cuida e está sempre presente.(ARAÚJO et al., 2014).
A passividade do pai no cuidado com a criança é consolidada pela ineptidão masculina para amamentar, isso causa neles a sensação de insuficiência na formação do bebê, assumindo a posição coadjuvante da mulher e apenas ajudando no que “fizer falta”, dar assistência e estar presente.
O papel paterno passa a ser então, apenas o de resolver outras burocracias referentes à criança e promover o bem estar da mãe e do bebê, não diretamente relacionadas ao cuidar- mesmo em pais que são presentes na criação. O tempo de licença à paternidade também foi observado como fator relevante no distanciamento do cuidado paterno na rotina dos casais estudados, visto que a mãe estava mais disponível por estar mais dias afastada das funções profissionais do que os pais de seus bebês. Esse fato parte do princípio de que a mãe legalmente tem mais tempo para se dedicar ao filho e sendo assim o homem não teria por que aumentar seu grau de participação.
O estudo, apesar de ser feito em uma cultura diferente, traz reflexões universais acerca do cuidado e dos papéis que homens e mulheres tomam para si quando se tornam pai e mãe, reproduzindo e alimentando construções sociais pré-estabelecidas de masculino e feminino.
(…)reconhecendo o peso que as relações sociais de género têm na determinação do significado individual e social atribuído ao ser pai e ser mãe. A maneira como se concebem enquanto pais ou mães e como se organizaram na transição para a parentalidade traduziu uma forma de produção de género, onde os valores, crenças e expectativas individuais, construídos a partir do imaginário cultural e de prescrições sociais, influenciam mutuamente as suas vivências. (ARAÚJO et al., 2014).
O argumento afetivo ainda toma conta do modo de organização dos pais, colocando a mãe como principal responsável pela demanda amorosa da criança (Batinter,1980) e reforçando a “natureza” fria dos pais. A dedicação total da mãe também reflete essa construção de que é a mãe tem um dom natural voltado ao cuidado.
Outra característica destacada pela investigação diz respeito à satisfação da mulher com a colaboração paterna e a dificuldade de se reclamar mesmo quando se encontra sobrecarregada emocionalmente. Esta ausência,segundo os autores, se fundamenta pela internalização de explicações ideológicas para manter o papel feminino, tais quais: o modo como a organização parental se estrutura corresponde aos papéis de gênero estabelecidos socialmente, é mais aceitável que a mulher se doe incondicionalmente à família porque seria de sua “natureza”, é aceitável também que o homem se dedique menos ao lar e a família por partir do princípio que essa participação é rara e quando acontece, deve ser motivo de gratidão e privilégio para elas.
Desta forma, os autores Cristina, Wilson e Maria afirmam:
Ser a figura primária de cuidados, com competências relacionais particulares, faz parte do repertório de qualidades socialmente atribuídas à condição feminina. Num estudo desenvolvido com trinta mulheres mães, Monteiro (2005) confirmou a importância e centralidade desta ideologia, destacando que a mulher, ao assumir o papel de principal cuidadora, adere e materializa uma identidade feminina valorizada e reconhecida. Simultaneamente, o cuidar, ao ser entendido como competência e atributo femininos, favorece ao homem um papel comodamente omisso: liberta-os dessa responsabilidade, participando apenas por voluntarismo e simpatia. (ARAÚJO et al., 2014).
Sendo assim, o mito da boa mãe que dá conta de tudo e todos e se dedica universalmente aos filhos mantém-se vivo no discurso contemporâneo. A estrutura social construída ao longo de séculos e fundamentada na cultura patriarcal determina os modelos de organização parentais.
Conclui-se que apesar da alternância de papéis sociais ao longo dos séculos e das mudanças histórico-sociais, muitas das vezes,mesmo em famílias com pai presente, ainda predominam as referências tradicionais e conservadores. Ao se dar conta do cenário completo, é possível que os pais compreendam seus respectivos papéis e como são afetados pelo histórico cultural que molda o modo como se comportam dentro do contexto familiar, criando novos modelos de criação e organização familiar mais harmônica.
Os autores discutem também a importância da realização de programas educacionais, durante a gestação e depois da gestação a fim de diminuir os danos familiares da ausência de cuidado paterno e sobrecarga materna. Torna-se necessário também a consolidação de políticas públicas de implementação de educação sexual e revisão de papéis de gênero,para que não afetem as relações familiares.
1.2 Problematização Jurídica do abandono
No presente capítulo, busquei entender algumas questões fundamentais sobre o direito de família e como funciona a judicialização dos casos de abandono, bem como os acordos entre os advogados e a busca dos direitos dos filhos pelas mães.
O direito das famílias é cerceado por inúmeros aspectos que por vezes não fazem o papel de resolver os conflitos da melhor forma, a burocratização do Poder Judiciário brasileiro, por exemplo, por vezes não se constitui como caminho mais rápido de resolução das questões que perpassam o âmbito familiar.
Falando especificamente sobre o dever do genitor de pagamento de pensão alimentícia aos filhos, quando há a ruptura do laço matrimonial, este serve para manter o padrão de vida da criança ou do adolescente, fruto da relação conjugal. Tal dever é garantido pela legislação federal, assim como o direito da criança e do adolescente é protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA). Sendo assim, a prisão por pensão alimentícia é a forma mais extrema de coerção para que o genitor cumpra seu papel fundamental. O abandono afetivo se configura ao verificar que há afronta aos princípios constitucionais, a inobservância dos deveres do poder familiar, e a presença de elementos caracterizadores da responsabilidade civil. (Tavares, Pereira,2021)
Não há lei específica para o abandono afetivo, mas sim a tramitação de um projeto de lei pela Comissão de Direitos Humanos do Senado que modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente. A PL 3212/2015, que esta em fase de aguardar a Designação de Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) assim detalha:
…submete à revisão da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 65 da Constituição Federal, o Projeto de Lei do Senado nº 700, de 2007, de autoria do Senador Marcelo Crivella, que “Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para caracterizar o abandono afetivo como ilícito civil(https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1999535).
A lei, se aprovada, garantirá a reparação de danos por parte do pai ou mãe que deixar de prestar assistência afetiva pela convivência.
O arcabouço legal existente na Constituição não deixa claro se a afetividade se encaixa nos âmbitos dos deveres dos pais com os filhos, já que somente o âmbito material é passível de julgamento.
Neste sentido, Évanes de Queiróz discorre:
O arcabouço legal existente não deixa claro se a afetividade se enquadra nos âmbitos dos deveres dos pais para com os filhos, visto que o acervo legal brasileiro impõe deveres do progenitor para com os filhos, abarcando sobre a assistência material. Assim, deixando aberto para a doutrina e a jurisprudência expenderem sobre uma possível reparação de danos aos filhos abandonados, afetivamente, por sua mãe ou seu pai. (de Queiróz, Évanes, 2021)
A primeira decisão do STJ que reconheceu o direito à indenização por dano moral pelo abandono afetivo, sob a liderança da Ministra Nancy Andrighi, destacou a ofensa ao dever do cuidado. Na ocasião, a Ministra Nancy afirmou que “aqui não se fala ou discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos”.(STJ – REsp: 1159242 SP 2009/0193701-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 24/04/2012, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2012 RDDP vol. 112 p. 137 RDTJRJ vol. 100 p. 167 RSTJ vol. 226 p. 435)
No caso de não cumprimento do cuidado afetivo dos filhos, configura-se uma ilicitude civil, sob a forma de omissão, cabendo a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.
É importante citar que não se faz mais o uso da expressão “visitas”, sendo substituída por “convivência”, fato de fundamental importância para o compartilhamento de direitos e deveres de ambos os genitores e não somente da mãe, como tradicionalmente seguida pela ideologia patriarcal.
Nos capítulos anteriores foram explicitadas todas as formas de se pensar o abandono pelo viés social e cultural, de modo que a prisão na maioria das vezes não deva ser o principal modo de resolução do problema da falta de obrigação do genitor que abandona seu filho ou filha, mas sim uma medida excepcional que se encaixa em apenas uma minoria dos casos de abandono paterno.
Na opinião de Irís Lippi, advogada cível atuante na área de família e membro do IBDFAM, o direito de família busca trabalhar com formas alternativas de soluções de conflitos, o Brasil possui inúmeras Câmaras de Conciliação, que prestam auxílio a qualquer cidadão na tentativa de solução de um problema, sem precisar de uma decisão judicial.
Tal alternativa pode ser usada na fase pré-processual, antes da distribuição de um processo na Justiça, por meio dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) para tentativa de acordo. No caso de haver consenso em uma decisão, tem a validade de uma decisão judicial. Para Iris, tais medidas são fundamentais no direito de família, pois se constituem como uma forma pacífica de resolução dos conflitos, benéficas para todas as partes envolvidas.
“O direito de família privilegia o acordo para que a questão se resolva de modo menos traumático para ambas as partes, se o acordo der certo, suspense-se a ação judicial e torna o processo mais humanizado”. ( Lippi, 2021, entrevista nossa)
A advogada destaca ainda que apesar de existirem leis que assegurem o cumprimento dos direitos dos filhos, o poder judiciário não é estruturalmente capaz de resolver tantos casos.
O pagamento de pensão alimentícia e a lei que a regulamenta são delicadas por tratar-se de uma demanda tanto social quanto jurídica, e a necessidade de tornar uma demanda afetiva palpável por lei.
Amanda Tavares e Claudia Pereira, assim afirmam no artigo “A prisão civil por dívida de alimentos e o estado de coisas inconstitucional”:
O assunto fica ainda mais sensível quando se refere às formas coercitivas para o cumprimento da obrigação alimentar…a sentença na ação de alimentos pode ser executada por alguns mecanismos, dentre eles por meio da prisão civil do devedor de alimentos. Esta medida extrema está disciplinada no Texto Constitucional, no artigo 5º, inciso LXVII, nos artigos 528 e 911 do Código de Processo Civil de 2015 e no artigo 19 da Lei 5.478/60 (Lei de Ação de Alimentos). (Tavares, Pereira,2021)
Ainda segundo as autoras, é inegável a importância da obrigação alimentar no ordenamento jurídico nacional para garantir a sobrevivência dos dependentes, mas a prisão por dívida como meio coercitivo é cabível apenas no caso dos alimentos previstos nos artigos. 1.566, III, e 1.694 do Código Civil de 2002.
O direito brasileiro tem buscado novas possibilidades e formas mais brandas de resolução de conflitos de paternidades ausentes. Além disso, a prisão do pai que deixa de pagar a execução de alimentos ocasiona, por vezes, um profundo abalo psicossocial e afetivo na vida da família como um todo também. A situação de prisão de um familiar impacta negativamente os adultos, e por consequência, as crianças filhas ou não do indivíduo condenado.
Sobre a questão, Amanda e Claudia reafirmam:
“Foi justamente buscando humanizar a lei aplicado aos devedores de alimentos inadimplentes que o Conselho da Justiça Federal, na VII Jornada de Direito Civil, aprovou o enunciado nº 599 que faculta ao magistrado aplicar medidas coercitivas diversas da prisão em regime fechado em hipótese de alimentos avoengos. Foi um passo tímido, porém importante no caminho que está sendo percorrido no Brasil para que haja o contorno da crise do sistema prisional ao mesmo tempo que se busca o pagamento correto dos alimentos que são de suma importância para a vida saudável e digna dos infantes. (Tavares, Pereira, 2021)
Além do prejuízo emocional, o sistema prisional brasileiro é extremamente sobrecarregado e não promove melhorias sociais aos detentos que ficam em regime fechado; logo, a pena de privação de liberdade aos pais devedores de pensão alimentícia não é melhor alternativa.
Como pontuam Tavares e Pereira:
“O interessante, para o caso específico dos devedores de alimentos, é fazer uma análise de um dos direitos violados nas prisões brasileiras: deficiência no acesso ao trabalho. É verdade que cada caso de pensão alimentícia aos filhos menores deve ser analisado criteriosamente pelo Poder Judiciário antes que se decrete a prisão civil, porém a teoria nem sempre acompanha a prática. Quando um pai ou uma mãe são privados de sua liberdade por falta de pagamento de pensão alimentícia e não têm meios de provê-la, ficam no cárcere sem chances de redimir sua pena, pois não tem acesso ao trabalho, meio pelo qual poderiam adimplir com suas obrigações.” (Tavares, Pereira, 2021)
Sendo assim, a prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia é garantida na aplicabilidade da lei, mas traz consequências psicológicas para todas as partes envolvidas e não promove a eficácia de resolução do problema do abandono material.
Os tribunais brasileiros e os advogados atuantes no direito de família, buscaram outros meios alternativos à prisão; destinando somente em última instância a prisão cível.
A questão jurídica do abandono tanto material quanto afetivo paterno diz respeito não somente ao âmbito do direito e das leis,mas como já dito anteriormente nesta pesquisa, perpassa a questão cultural da sociedade brasileira.
Para Ricardo Calderón, Doutorando, Mestre em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito da Família, o problema não decorre da condução das audiências ou da aplicação da lei em si, mas de um processo cultural, que por mais que esteja em substancial mudança, ainda deixa rastro na percepção de que o cuidado com os filhos é uma tarefa materna.
Ricardo assim afirma:
Esse traço está presente na cultura da família brasileira e merece atenção para uma ressignificação. Não são os processos que o colocam, mas o sistema como um todo pode retratar essa visão majoritária da nossa sociedade, de que o pai é coadjuvante na criação dos filhos. Infelizmente isso ainda parece ainda estar presente. (CALDERÓN, 2021, entrevista nossa)
Sobre a condução dos casos no judiciário e a perpetuação de preconceitos nas audiências e nas decisões dos juízes, ele ressalta que o direito é apenas o espelho da sociedade, fato que tolera que os operadores jurídicos repitam em sua atividade uma estrutura patriarcal reinante que reafirma o papel do pai como coadjuvante.
O advogado assim ressalta:
Embora, é evidente, os profissionais devam se qualificar e se policiar para não reproduzir tais visões distorcidas, principalmente os que trabalham em uma área tão sensível como a do direito de família. E também é fato que o direito pode assumir um papel transformador e procurar contribuir mais para reverter esse cenário. Lamentavelmente, em muitos casos os próprios pais se tornam coadjuvantes por si, ou – pior – ausentes por completo. Essa ainda é uma realidade que não pode ser mitigada, vide o próprio número de ações litigiosas de investigação de paternidade, o que mostra uma resistência inicial desde a assunção da paternidade. (CALDERÓN, 2021, entrevista nossa)
Para a advogada Grace Costa, a condução das audiências e a aplicação da lei nos processos de investigação de paternidade e pensão alimentícia não contribuem para colocar o pai na função de coadjuvante na criação dos filhos, mas ela afirma que ainda há muito que melhorar para cada vez mais incluir os pais nos cuidados apesar de ter havido mudanças significativas no judiciário no sentido de garantir que pais e mães tenham os mesmos direitos e deveres perante seus filhos, fazendo com que os pais saiam do papel de coadjuvante e pagador de pensão e passem a cuidar diretamente de seus filhos. Ela reitera que a lei de guarda compartilhada contribuiu muito para tal.
A lei 13.580 determina que o tempo de convívio com os filhos seja igualmente dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos, assim como a moradia que o filho residirá será aquela que melhor atender aos seus interesses. Embora a lei tenha sido implementada em 2014, existem ainda objeções ainda à sua implementação. Tal aspecto segue a mesma linha de discurso machista de que o homem apenas “ajuda” nas tarefas do lar, quando é dito que no caso de separação dos pais, o convívio dos filhos fica preferencialmente com a mãe.
Para Rodrigo da Cunha Pereira, a premissa está errada:
“O homem deve compartilhar as tarefas domésticas, pois não se trata de ajuda. Assim como a mãe não tem que “deixar” o pai ver o filho, pois os direitos são iguais” (Pereira, 2020)
Na visão de Calderón, o fato de haver tantos casos de abandono paterno no Brasil a um cenário social com inúmeras questões socioculturais, e que por consequência, o direito reproduz na condução dos casos. Não deixa de ressaltar que há sim muitos casos de pais que querem assumir o protagonismo inerente ao seu papel de pai e sofrem com restrições das mães ou das restrições que lhe são impostas pelo Judiciário, mas isso deve ser percebido em um contexto macro, junto com outras mediações, para evitar uma compreensão distorcida e muito parcial. Sobre isso, o advogado afirma:
Tivemos recentes mudanças no direito, como a última Lei da Guarda Compartilhada, que inclusive foi chamada de “Lei da Igualdade Parental”, em um claro e significativo esforço para mudar esse cenário. Mas o que se percebeu em um primeiro momento e até hoje foi uma grande dificuldade inicial na aplicação dos dispositivos postos nesta lei. Apenas passados alguns anos é que ela passou a ser implementada com maior vigor nos casos concretos. Leis são relevantes, mas não apenas isso. (Calderón, 2021, Entrevista nossa)
Ricardo afirma que percebe sinais de mudança dessa postura omissa paterna com as gerações mais jovens distribuindo melhor as funções dos genitores, mas que essa ainda é uma característica incipiente na sociedade brasileira. Embora exista um comportamento diferente nas novas gerações, nas quais o pai quer se manter participativo, ainda há muitos casos de omissão da responsabilidade tanto afetiva quanto financeira.
Parece haver muito a ser feito, pois temos claros resquícios de um patriarcado reinante, que acaba por deixar a carga principal de cuidado dos filhos apenas com a mãe, sem fornecer suporte para isso. As mudanças devem ser vistas na sociedade e nas pessoas. (Calderón, 2021, Entrevista nossa)
Diz ainda que o caminho para a mudança na conjuntura social e consequentemente jurídica está na criação de políticas públicas assim como campanhas nacionais e privadas de conscientização de paternidade, mas também se torna necessário que a sociedade civil assuma a sua parte da contribuição para alterar o quadro. Na opinião de Ricardo, não parece possível deixar essa missão para o Estado, ainda que ele possa ser o principal difusor. A respeito da carga emocional e financeira para as mães-solo e o papel do direito na contribuição com as mães que sofrem com a carga de cuidado exclusivo dos filhos, ele ressalta que o direito pode dar a sua dose de contribuição, embora a problemática principal não sejam as leis, elas apenas fazem parte dela.
Para Calderón:
Muito mais do que mudança de leis, penso que devem ser fornecidos instrumentos operacionais para os processos de investigação de paternidade e execução de pensão tenham melhor trâmite. Isso passa pela destinação de recursos ao Poder Judiciário, do Ministério Público, por melhores condições de trabalho para as Varas de Família no Brasil, por um melhor aparelhamento das Defensorias Públicas, por uma melhoria nas chamadas Casas da Mulher Brasileira, organização dos Conselhos Tutelares, etc…(Calderón, 2021, entrevista nossa)
Ele finaliza dizendo que alterar as leis que forem necessárias pode ser uma boa medida, mas a questão parece ser em grande parte metajurídica. Para uma mudança significativa maior, deve-se também considerar a importância da participação das empresas privadas quanto à mudança de estrutura, com instalação de creches, estipulação de horários de trabalho compatíveis com a retirada dos filhos na escola, facilitação de ausências pontuais para as mães levarem os filhos aos médicos, entre tantas outras possibilidades. Neste sentido, entende-se que as principais contribuições são no sentido estrutural, já que o problema do abandono está enraizado na cultura brasileira e provém de um sistema patriarcal com fortes raízes histórico-culturais.
A respeito da compensação sobre a mãe que convive com a postura omissa do pai, Andreza Zidiotti Neves, advogada do núcleo de prática jurídica da PUC-SP, afirma que não há como obrigar um pai a conviver com o filho, pois o abandono afetivo não é tão palpável quanto o material.
A advogada assim reitera:
“Não tem uma lei judicial que obrigue um pai a buscar o filho no final de semana.” (Zidiotti, 2021, entrevista nossa)
E complementa dando exemplos que atendeu em seu escritório, que é conveniado com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e cuida de casos nos quais os indivíduos não podem arcar com as despesas de um processo e possuem renda per capita inferior a três salários mínimos. Já atendeu em seu escritório um caso em que sua cliente se queixava da demanda exclusiva de afeto que tinha que dar ao filho por omissão paterna e que por mais revoltante que seja a atitude,por vezes não existem medidas cabiveis a serem tomadas. Ela destaca ainda que nestes casos, mesmo aplicando multa qu obrigue o pai a conviver com aquela criança, não seria possível saber em que condições ela estaria sendo submetida, já que o pai não está agindo por livre e espontânea vontade.
Se o pai não demonstra interesse em pegar o filho, existem muitos casos em que isso acontece, é muito constante o pai que não presta nenhuma assistência…até paga a pensão(alimentícia), mas acha que isso supre essa falta de carinho e afeto. Isso é uma coisa que acontece bastante e que o Judiciário não tem como resolver. Fato que além de prejudicar a mãe, causa frustração na criança, que cria expectativas de convívio com o pai…o abandono afetivo é pior que o material, porque este na maioria das vezes a mãe supre de alguma forma, mas o afetivo não. Acho que esse é o mais triste que a gente vê, a figura da pessoa que só gerou (Andreza Zidiotti Neves, 2021, entrevista nossa)
Andreza diz que em seu escritório a maior parte dos casos são de execução de alimentos, seguidos de regulamentação de visitas. Afirma que esse fator se repete muito nos casos em que o pai entra em um novo relacionamento, fato também ressaltado por Mônica e Blenda, personagens deste livro, em suas histórias.
Para Iris Lippi, quando a mãe sofre com a falta de presença afetiva do pai, ela propõe entrar com uma ação de Obrigação de Fazer sob pena de multa, determinando que se o pai não conviver com o filho nos termos determinados pelo Juiz, ele será submetido à pagar multa. Neste caso, Iris destaca o mesmo ponto de Andreza: quais seriam as circunstâncias a criança estaria submetida. Iris assim afirma:
Você entregaria o seu filho a alguém que só vai pegar pra não pagar multa? Eu não entregaria, é um negócio problemático, como é que você vai fazer com que o outro faça? O que eu falo para as minhas clientes é o seguinte: ‘o que a gente talvez pode fazer é entrar com uma ação de alimentos para ampliar o valor, para que assim você possa pelo menos contratar uma babá no fim de semana que ele não venha, às vezes funciona (Lippi, 2021, entrevista nossa)
Para a magnitude da tarefa, ainda mais em tempos de crise financeira, não parece recomendável imputar tais medidas apenas ao Estado, ou esperar muito do direito, sendo recomendável convocar-se a sociedade civil como um todo, para que cada um possa dar a sua dose de contribuição.
Para Grace Costa, advogada especialista em Direito de Família e Sucessões e presidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC),o principal desafio no dia a dia dos casos atendidos por ela no escritório é lidar com o Judiciário e sua demora na condução e conclusão dos casos que chegam. Ela cita ainda que, por vezes, o órgão não detém a sensibilidade necessária para lidar com questões familiares, principalmente as que envolvem abandono dos filhos por parte de um dos genitores. A mesma fala é ressaltada por Iris Lippi, ao afirmar que quando os casos vão ao julgamento do Judiciário, é muito difícil saber que desfecho terão, porque o direito de família é uma área muito aberta à diversas interpretações.
Iris cita ainda que no caso de processos de execução de alimentos, que dependem da necessidade do alimentado e da possibilidade do alimentando, muitas vezes não há como saber o valor que o juiz fixará ao fim da ação. Iris prioriza sempre o acordo em seus casos, evitando ao máximo os conflitos de família irem para a justiça:
No escritório a gente tem um trabalho mais cuidadoso de juntar as provas, mas nem sempre você consegue essa prova prévia para poder propor a ação e enquanto aquela prova não sai, ela fica dependendo do poder judiciário,que muitas vezes pode não ser satisfatório…eu acho até que a nossa legislação é boa,mas o problema é poder judiciário que está sobrecarregado de casos, então as ações não andam com a celeridade que talvez devessem.( Lippi, 2021, entrevista nossa)
Grace Costa faz uma ressalva afirmando que o trabalho do advogado é fundamental, assim como as leis que garantem os direitos básicos aos filhos, mas é preciso que ambas as partes envolvidas no processo estejam dispostas a conversar, se colocar no lugar do outro e a ceder em algum ponto, caso contrário não há possibilidade de acordo.
Ambas as profissionais atentam para a necessidade do diálogo antes mesmo de levar o problema à justiça. Iris afirma que grande parte dos casos atendidos por ela, quando os pais entram em um acordo pacífico e chegam juntos a um consenso seja sobre o valor da execução de alimentos, seja qualquer outra questão que envolva os filhos; o acordo tende a ser cumprido por mais tempo e sem mais intercorrências. Por sua vez, quando o caso é sentenciado por um Juiz,sem que haja uma conversa prévia, o acordo tende a ser descumprido e uma das partes pede revogação em pouco tempo.
Nas palavras de Iris:
Quando as partes fazem um acordo é muito mais fácil que ele seja cumprido justamente por ter sido da vontade de ambos e a tendência é que ele dure anos. Quando é o juiz quem faz o acordo, é comum que em pouco tempo alguma das partes queira revisá-lo. O direito de família tem muito disso, pode-se revisar guarda(pedido de guarda) ,alimentos,regime de convivência a qualquer tempo desde que altere a situação fática, ou não, às vezes o indivíduo quer mitigar mesmo sem alteração alguma. A gente diz que um bom acordo, aquele que é equilibrado, dura por muitos anos sem litígios, porque o litígio é muito desgastante. (Lippi, 2021, entrevista nossa)
Há mecanismos legais para fazer com que a lei seja cumprida, mas existem problemas estruturais que deixam os processos lentos. Durante a pandemia, há ainda mais entraves, como a diminuição dos oficiais de justiça atuantes nas ruas cumprindo mandado ou por apresentarem comorbidades ou por idade avançada e esse número acaba sendo insuficiente para atender a demanda de citação, que no caso de direito de família a grande maioria é feita pessoalmente (e não por Aviso de Recebimento). Esse fator atrasa alguns processos que poderiam ser agilizados com citação eletrônica.
Muitos Tribunais brasileiros não possuem investimento em cursos de capacitação e fornecimento dos meios adequados para os trabalhos dos oficiais.
No geral, além da sobrecarga de trabalho desses profissionais, muitas vezes eles não possuem informações prévias sobre o domicílio ou até mesmo os riscos da diligência. Além disso, o resultado acaba sendo menos vantajoso pelo custo de deslocamento ou quando o indivíduo citado não reside mais no mesmo endereço. Há uma alta taxa de congestionamento dos processos de execução do CNJ, sendo este uma das grandes problemáticas do sistema judiciário brasileiro.
A solução estaria em conceder maior autonomia aos processos e oferecer sistemas modernos, ferramentas de investigação e melhor estrutura de trabalho dos oficiais de justiça.
Grace Costa reforça o ponto de vista explicitado por Ricardo, de que a justiça brasileira, as leis e a condução dos casos são reflexos da questão cultural, que vem sendo modificada e cada vez mais tem-se pais participando na criação e educação de seus filhos.
Rodrigo da Cunha Pereira, fundador do IBDFAM, o direito de família vai de encontro com a cultura, sofrendo diversas modificações ao longo dos séculos, conforme as mudanças sociais se manifestam no modo como vivem os indivíduos. Logo, a questão de gênero perpassa a condução dos casos.
Ele assim afirma:
São apenas exemplos de que novas estruturas parentais e conjugais estão em curso, por mais que gostemos ou não, queiramos ou não. E é por isso que a mais importante fonte do Direito são os costumes. A vida vai acontecendo, o desejo vai tecendo novas tramas, em busca da felicidade, e o Direito deve ir se moldando a esta realidade. (Pereira, 2020)
O movimento feminista teve grande importância para a mudança do cenário tanto legislativo quanto cultural brasileiro, repercutindo nas estruturas de poder masculinas. No caso de guarda dos filhos, essa ideia vem da premissa de que as mães sabem melhor cuidar de seus filhos, o que muitas vezes afeta o julgamento dos casos de guarda. No entanto, hoje em dia já se sabe que ambos têm a mesma capacidade tanto cuidadora quanto financeira da família. Faz-se necessário que o judiciário acompanhe a mudança de mentalidade, necessária também para tirar os filhos do lugar de objeto de troca, reforçando parental em benefício dos filhos.
Logo, fica a reflexão de que as leis não têm a capacidade de modificar a consciência dos pais, entretanto, modelos punitivos de responsabilidade civil nestas situações deveriam servir de exemplo para esta prática ser abolida da sociedade, a fim de prevenir casos de negligências afetivas com os filhos ou com os pais idosos, mormente na atual situação do COVID 19.
Para a magnitude da tarefa, ainda mais em tempos de crise financeira, não parece recomendável imputar tais medidas apenas ao Estado, ou esperar muito do direito, sendo recomendável convocar-se a sociedade civil como um todo, para que cada um possa dar a sua dose de contribuição.
1.3 Problematização psicológica
No primeiro contato que tive com Elizabete Franco, ela me disse que talvez não seria a pessoa mais indicada para minha pesquisa porque trabalhava com a psicologia do ponto de vista social e cultural e não somente pensando nos danos que uma ausência paterna pode significar ou não na vida de uma mãe ou de um filho. A primeira afirmação dela quando questionei sobre o trauma do abandono foi:
“Será que toda ausência paterna vai deixar trauma?” (Elizabete Franco, 2021, entrevista nossa)
Fazendo uma interface com a história de Lucas, um dos personagens que compõe este livro, que conviveu com seu pai durante 13 anos enquanto moravam na mesma casa, a ausência dele foi mais fácil de lidar do que a sua presença.
Nossa relação nunca foi muito próxima, quando eu era mais novo tinha a relação normal de pai e filho, de morar junto…mas quando eu tinha uns 10 anos ele começou a ficar mais violento e ter um problema mais sério com bebida. Moravam eu, minha mãe e minha irmã juntos e ele sempre foi uma pessoa muito explosiva, mas não só explosiva, ele tinha momentos de explosão e meses de depressão, o que era bem difícil de lidar. Ele também era bem machista, então sempre quis ter um filho homem, hoje em dia ele tem 76 anos, já tinha duas filhas e depois me teve. Isso fez com que ele projetasse muita coisa em mim, que eu nunca fiz questão de cumprir, mas isso era só um detalhe se não fosse todo o resto do cenário problemático. No final do casamento deles, a relação dele com a família toda já estava bem desgastada e ele sempre deu mais atenção para mim. Eu fiquei com a atenção e minha irmã ficou com a surra, porque ela apanhava muito dele durante muito tempo (Lucas, 2021, entrevista nossa)
O caráter agressivo do pai de Lucas deixou muitas marcas na família e ele conta que a primeira infância dele foi um borrão com uma mistura de sensações. A vivência da violência do pai dentro de casa e do incômodo que a figura dele causou fez com que o menino não conseguisse detalhar muitas cenas de sua infância com o pai em casa. Sobre a questão, Lucas afirma:
“Ele tinha muitas expectativas em mim que um pai da década de 50 tem de seu primeiro filho homem” (LUCAS, 2021, entrevista nossa).
A declaração do pai do garoto demonstra uma expectativa de gênero imposta e entendida socialmente como o lugar que deveria ser designado por homens. A expectativa que o pai depositava em Lucas era de que ele fosse viril, não demonstrasse sentimentos e nem fraquezas. Isso também dificultava a relação de proximidade dos dois, porque o pai sempre esperava que o garoto fosse uma pessoa que ele não era.
Sobre o comportamento do pai, Lucas reitera:
Sempre foi bastante machista e preconceituoso no geral… quando ele se mudou de casa com os meus 13 anos, foi a minha mãe quem pagou o apartamento porque ele não tinha grana para sair de casa. Minha mãe tentava blindar ao máximo a violência dele para que não passasse para mim e para a minha irmã, mas ela sofria violência psicológica com ele também. Apesar da minha irmã pegar o pior momento dele, na adolescência, ela era mais próxima, eu sempre fui mais distante e depois do divórcio eu perdi totalmente a vontade de ter qualquer contato e até hoje é assim… é muito desgastante ter qualquer tipo de contato. Meu pai voltou a falar comigo este ano praticamente, depois de quase 10 anos. Nos vimos poucas vezes logo depois que eles se separaram; mas dos meus 16 anos para cá foram umas duas vezes que eu vi ele. (Lucas, 2021, entrevista nossa)
A mãe dele é advogada e sempre teve uma condição financeira melhor que a de seu pai, então ela sempre arcou com os custos de Lucas e da irmã sem precisar da ajuda financeira do pai; que por sua vez, nunca pagou pensão alimentícia, apesar de nunca ter feito falta para Lucas e sua irmã.
Sobre o fato, Lucas diz:
“Ela (sua mãe) entendeu que o melhor a se fazer era ‘tirar’ ele de casa, mas nunca exigiu que ele cumprisse o papel de pai ou fornecesse nenhum tipo de participação. Foi um alívio para todo mundo quando ele foi embora, a casa ficou outra casa.” (Lucas, 2021, entrevista nossa)
Elizabete Franco explicita que o tempo histórico e os modelos de família construídos ao longo dos séculos, contribuem para que a psicologia trate a questão da falta como um problema causador de trauma em todos os casos.
No caso da família de Lucas, a ausência do pai melhorou a forma como a família se relacionava, já que a presença era mais problemática. O garoto conta que o pai nunca visitou os filhos depois da separação, mas ele nunca se importou o suficiente para ir atrás, até hoje eles não têm relação nenhuma.
O relato de Lucas mostra que nem sempre a ausência deixa sequelas ou causa reações negativas naqueles que passam pelo afastamento de seu genitor, são inúmeros os fatores causadores do trauma, que coexistem com o círculo familiar como um todo.
Ainda sobre a marca do pai em sua vida, Lucas afirma:
Eu nem sei o que é ter uma relação com o meu pai, nem lembro direito. Não tive uma figura paterna em minha vida, e como o meu pai era muito problemático eu busquei outras referências masculinas ao longo da vida, desde gente até na ficção. Na tentativa de entender papéis de gênero e me entender como homem. (Lucas, 2021, entrevista nossa).
Na opinião da psicóloga Elizabete Franco, mesmo sem o pai, a referência masculina daquela criança não é somente ele, assim como a referência feminina não só diz respeito à mãe. Se uma criança não tem o pai, ela mesmo assim encontrará outras referências, assim como foi o caso de Lucas.
As mudanças histórico-sociais causam mudanças no papel do pai na vida daquela criança e da mãe, Franco afirma que para avaliar se a falta de um pai na vida de um filho é prejudicial ou não se deve entender que a produção da psicologia é feita a cada tempo histórico.
Donald Woods Winnicott, psicanalista inglês que publicou diversos estudos sobre a relação mãe-bebê, explicando como se dá a questão materna nos primeiros anos de vida do bebê e como isso molda a psique da criança. Em seus estudos da década de 1960, o psicanalista discorre que a função do pai nos primeiros anos de vida de uma criança é dar sustentação à mãe e contribuir para que ela exerça o maternar de forma mais tranquila e saudável. Ao visualizar a figura que um pai possuía na década de 1960 e um pai atualmente, as funções são muito diferentes. Para Elizabete, as mulheres hoje em dia não querem e não esperam um pai ausente e nem os próprios pais desejam ser a figura que apenas visita os filhos ou os leva na escola de vez em quando.
A maior participação paterna na vida das crianças foi um movimento necessário diante das mudanças estruturais e o crescente ingresso das mulheres no ambiente público.
Para Winnicott, durante os primeiros meses de vida do bebê, ele vive uma relação dual com a mãe, e a mãe e o pai, juntos, formam o ambiente necessário para que o bebê amadureça e se desenvolva de uma forma saudável. Neste primeiro momento do desenvolvimento, o lugar do pai não é o mesmo da mãe na relação direta com o bebê, ele oferece sustentação à mãe e atua como mãe-substituta; como discorre o estudo de Raphaela Faria Soares:
Durante o período de dependência absoluta o bebê vive no interior da relação dual com a mãe, assim, nas formulações de Winnicott, está inserida a ideia de que a mãe e o pai, juntos, formam o ambiente total necessário para que o bebê amadureça, mesmo que o lugar do pai neste momento do processo não seja o mesmo da mãe na relação direta com o bebê. Assim, neste início o pai participa desta relação assumindo dois papéis principais: a de mãe substituta e oferecendo sustentação à mãe neste processo (Soares,2015, p.24)
O outro papel do pai, destacado na análise de Winnicott diz respeito à função de principal “cuidador” da díade mãe-bebê, responsável por protegê-la das influências externas para que ela estabeleça sua “função materna primária”.
Para Elizabete, não há como pensar na produção psicológica separada da cultura em que está inserida aquela família. Ela assim ressalta:
A produção psicológica muitas vezes trata a questão da falta como problema e trauma por conta do tempo histórico e dos modelos de família que foram produzidos até o momento…na medida em que você tem mudanças histórico-sociais, o papel do pai na vida daquela criança e da mãe mudam completamente. (Franco, 2021, entrevista nossa)
Acrescenta ainda que em uma versão mais clássica da psicanálise, o pai representa a entrada do “terceiro” elemento, aquele que entra como um limite na relação da mãe com o bebê. No conceito de Winnicott, a saúde mental do indivíduo é construída pela mãe, responsável por promover um ambiente propício à evolução da criança e garantindo as bases para o desenvolvimento físico e emocional do filho. Muitos autores chamam essa relação de díade mãe-bebê. (Elizabete Franco, 2021, entrevista nossa)
Como afirma Cristiane Gonçalves em sua tese de mestrado em Neurociências do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina, a relação paterna na vida do indivíduo deixou de ser foco dos estudos psicanalíticos durante séculos, fruto da cultura: Segunda a autora:
O motivo pelo qual o papel do pai ficou relegado nas pesquisas que envolvem a interação pai-bebê em etapas iniciais do desenvolvimento infantil, possuem implicações culturais historicamente construídas. Neste sentido, sua compreensão passa pelo entendimento dos significados das representações sociais de maternidade e paternidade materializadas no pensamento social, intrinsecamente relacionadas às representações de gênero, que produzem formas, diferenciadas ou não, de conceber o masculino e o feminino, sempre referenciados nas diferenças biológicas entre os sexos. ( GONÇALVES,2002,p.12)
De certo modo, há uma construção social que associa o papel materno a um aspecto biológico e o paterno à uma definição social e cultural desvinculada do processo reprodutivo. Fato ligado diretamente ao consenso que afasta os cuidados afetivos da masculinidade e das funções do pai.
Gonçalves assim afirma:
As poucas pesquisas que incluíram o pai antes dos anos 70, tratou de uma variedade de assuntos, mas, raramente sobre o amor do pai. Esta omissão, segundo Rohner & Veneziano (2001), foi influenciada pela tendência que havia entre os teóricos e investigadores de que este sentia ou expressava menos afeto do que as mães. Muitos cientistas de comportamento e clínicos pareciam aceitar o postulado que o papel principal de pais na família, estava no domínio instrumental e o papel das mães encontrava-se no domínio expressivo-afetivo. (Parsons & Bales, 1955, apud Rohner & Veneziano, 2001). (Gonçalves, 2002, p.71)
Além disso, e ainda segunda Cristiane Gonçalves, os estudos pós década de 1990, reiteraram que a ausência ou deficiência do pai pode ter repercussões negativas para a mãe tanto na maneira como ela vive a gravidez e a maternidade, como para o para o desenvolvimento psíquico, social e cognitivo do bebê.
Para a psicóloga Elizabete Franco, existem famílias em que é a mãe quem faz esse limite de separação da díade, mesmo quando o pai é presente. E ressalta ainda que tanto a mãe quanto o pai são figuras estruturantes na autoestima da criança e no modo como aquele ser vai se relacionar consigo e com o mundo.
Franco reforça:
Eu vejo a figura do pai como um adulto capaz de contribuir para o desenvolvimento da criança. O que ela diz em relação a ela mesma é o que os pais mostram para ela. Se os pais estão sempre menosprezando aquela criança, dizendo que ela não é capaz, e que não vai conseguir, ela começa a pensar isso dela também. Define como ela se coloca no mundo, valores de sociabilidade, partilha e troca. (Franco, 2021, entrevista nossa)
A psicóloga ainda ressalta que o trauma muitas vezes é ocasionado não pela falta do pai em si, mas sim pelos modelos sociais impostos àquela criança no ambiente no qual ela vive; citando o exemplo das festas comemorativas realizadas nas escolas, como dia das mães e dia dos pais, que podem ser muito traumáticas para a criança que não tem pai ou a mãe porque ela sentirá que não se encaixa de certa forma naquela estrutura.
Ilustra ainda que muitas vezes o trauma é fruto da produção cultural que por vezes está ligado ao comércio e se refere ao lugar da mãe e o lugar do pai, perpassando a questão de gênero:
Quando eu penso na família tradicional, ‘de margarina’, com um pai, uma mãe e um filho, ou seja, um modelo nuclear, ele também é construído cultural e historicamente e quando você muda esses papéis e coloca a mulher na esfera fora do lar, você também muda a configuração de família. Hoje existe uma discussão em que as crianças não precisam ser cuidadas somente no espaço da família, mas sim em espaços coletivos e com muitas partes envolvidas em sua socialização. (Franco, 2021, entrevista nossa)
Elizabete afirma em seu artigo “Notas sobre amizade” que ao pensar na questão familiar, precisamos pensar em algumas partes fundamentais: a desconstrução do modelo de família nuclear como referência do que seja família, isso significa pensar e considerar os múltiplos modelos familiares que podem se formar ao longo da vida dos indivíduos e considerar as pluralidades nos diferentes modos de constituição familiar.
Franco cita um trecho da obra de Leny Alves Bomfim Trad para explicar que é preciso deixar de adotar modelos familiares universais e generalizantes ao analisar a estrutura e dinâmica da família contemporânea. Trad assim afirma:
À medida que se afirma o caráter plural ou polimorfo da família reafirma-se também a sua complexidade, evidenciando-se a falência de modelos explicativos de pretensão universalista. De entrada, é necessário destacar que o processo de transformação de modelos e padrões familiares revela-se heterogêneo, fragmentado e marcado por ambiguidades, quando comparamos a realidade de diferentes sociedades e/ou grupos sociais. (Trad, 2010, p.29)
A segunda parte fundamental destacada por Elizabete é desconstruir a ideia de que a família é o elemento nuclear da sociedade, porque é a família que é responsável pelo cuidado das pessoas, quando na verdade ao manter tal parâmetro, se esquece que há um conjunto de relações delicadas e impossibilidades de diferentes ordens que impedem a família de oferecer o cuidado de que o sujeito necessita.
A mesma fala foi ressaltada por Blenda, uma das mães que entrevistei, ao dizer que é preciso que uma comunidade inteira cuide de uma criança, assim como a criação de políticas públicas que visem o bem-estar da família como um todo, seja ele formado por uma mãe e um pai ou somente uma mãe, ou qualquer outro núcleo familiar.
Na visão de Elizabete Franco, não significa que a falta do pai não cause trauma ou provoque reações ruins na criança, mas o fator fundamental a ser avaliado é o quanto de amor aquela criança tem como referência em sua vida, não só da família, mas todo o círculo social.
Elizabete pontua:
“Não ter o pai é algo que a criança vai ter que ressignificar e lidar com a falta, mas temos muitas faltas na vida, mas a questão cultural aumenta a falta do indivíduo”.(Franco, 2021, entrevista nossa)
Chama atenção ainda para as inúmeras formas de parentalidade que se desenvolvem nos dias de hoje, não descartando que em algumas famílias a falta do pai possa ocasionar traumas, mas abrindo a discussão de como isso por ser mais fluido com as mudanças culturais do século XXI, novos arranjos familiares em que a criança cresça saudável.
Acerca desta visão, Franco ressalta:
Eu não penso em uma psicopatologização da diferença…é necessário mais do que entender o que universalmente significa para todas as crianças não ter pai, é importante entender como essa criança está vivendo a experiência de não ter pai. Uma presença problemática por vezes é mais prejudicial que uma ausência, é necessário entender de que modo essa criança se relaciona com o todo, em que circunstâncias ela está sendo criada, como a mãe se relaciona com a criança. Pode acontecer da mãe estar sentindo a falta desse pai e ela também passar um peso para a criança, nem sempre o trauma está associado apenas à falta do pai, mas sim como essa falta é significada na família. Não existe uma resposta universal. (Franco, 2021, entrevista nossa).
A psicóloga diz ainda que a idealização de paternidade também interfere na produção científica:
“Vejo que a psicologia que universaliza a paternidade ausente sempre como uma falta, provoca uma universalização de um tempo histórico”.( Franco, 2021, entrevista nossa)
A fala dela reflete que muitos estudos da psicologia ao longo dos anos, quando presentes, sempre colocaram a falta do pai como fator ocasionador de trauma na vida do filho, quando na verdade depende de uma conjunção de fatores.
Elizabete chama atenção para o fator de gênero:
“Antes de tudo é preciso entender como é a socialização dos meninos para a criação dos bebês, e como isso influencia quando adultos, desde brincadeiras de boneca até o quanto a construção da masculinidade está ligada com o exercício da paternidade.”( Franco, 2021, entrevista nossa)
Reafirma ainda que o amor não é biológico e que nem sempre o pai biológico é quem teve a função paterna; reiterando o fato de que o amor também é uma escolha. Para Elizabete Franco, o consumo de uma paternidade idealizadora talvez seja a pior parte e o que traria mais prejuízos psicológicos e emocionais à um filho ou filha do que efetivamente a falta de um pai na vida desse indivíduo. Em outras palavras, não é somente a falta que trará consequências negativas, porque há casos em que a ausência do pai é de certa positiva ou o contexto familiar compensa de forma equilibrada essa ausência.
A psicóloga traz à discussão a construção dos modelos de paternidade:
Esses padrões ficam registrados na gente como modelos ideias, por exemplo uma criança que foi adotada por uma mulher, ela vive na escola e na escola as pessoas em pai e mãe…mas é interessante saber que vão ter outros modelos de família que não o nuclear, e não ficar com o sentimento de inadequação e buscar outras referências.( Franco, 2021, entrevista nossa)
A psicóloga Mariângela Mantovani, com quem também conversei, ao dizer que é muito comum encontrar filhos que sofreram ausência paterna, reafirma sobre os padrões sociais esperados de um homem e de uma mulher culturalmente, dizendo que por vezes, ainda que o cenário tenha mudado; espera-se que um pai seja a figura do provedor; causando uma possível crise de paternidade nos homens que não conseguem cumprir com esse papel e acabam se afastando completamente de sua função familiar.
Mariângela assim afirma:
Nossos pensamentos nascem dos nossos traumas e a gente vê que a pessoa que sofreu abandono por parte de pai tem uma certa dificuldade em aceitar a falta de amor e ausência. Pode ou não causar danos profundos, mas na grande maioria dos indivíduos pode causar sentimento de rejeição, auto rejeição e fazer a pessoa pensar ‘se minha mãe não me amou, se meu pai não me amou, quem poderá me amar?’ (Mariângela Mantovani, 2021, entrevista nossa)
A psicóloga reitera que quando o abandono acontece na vida de uma criança, é comum que ela ache que o afastamento daquele pai é culpa dela de certa forma e passa a entender a situação de forma mais clara somente na vida adulta, ou até mesmo quando constitui sua própria família. Mesmo assim a ausência fica.
Diz ainda que podem existir mecanismos de compensação e de vínculo compensatório do indivíduo que sofreu com a falta paterna por meio de drogas, bebida e outros vícios; na tentativa de suprir um vazio que aquela ausência provocou. No entanto, a falta de um pai não vai ser suprida, e tais ações seriam apenas uma tentativa de escapar dela ou lidar com esse sentimento. Os danos desse abandono podem ser minimizados com outras figuras familiares ou não, mas sempre haverá a memória do abandono. A figura pode apenas compor uma estrutura familiar.
Mariângela ressalta a importância da terapia para ajudar o indivíduo a lidar com o trauma e ressignificar os motivos do porquê aquele pai abandonou.
A alienação parental é um fator importante ao analisar as parentalidades e as dinâmicas familiares. Mantovani afirma que, em muitos casos, essa prática é o que ocasiona o afastamento daquele pai para seu filho, que tentou estabelecer relação, mas a mãe fez de tudo para que não houvesse construção parental. Quando este pai entra em um novo relacionamento, ele desqualifica o valor da paternidade real dele e faz um vínculo compensatório na relação com os filhos da nova companheira.
De modo geral, a questão psicológica em torno do abandono paterno deve ser analisada de diversos pontos de vista, tanto em uma visão interna da conjuntura familiar daquele filho que sofreu o abandono quanto numa visão externa; de fatores culturais e sociais em que o indivíduo está inserido.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
A.BOMFIM TRAD, Leny. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. [s.l.]: SciELO – Editora FIOCRUZ, 2010. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=nOPpAgAAQBAJ&pg=PA29&lpg=PA29&dq=%E2%80%9C%C3%80+medida+que+se+afirma+o+car%C3%A1ter+plural+ou+polimorfo+da+fam%C3%ADlia+reafirma-se+tamb%C3%A9m+a+sua+complexidade. Acesso em: 13 Nov. 2021.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. [s.l.: s.n.], 1980. Disponível em: https://we.riseup.net/assets/127560/Badinter%2C+Elisabeth+O+Mito+do+Amor+Materno.pdf. Acesso em: 13 Nov. 2021.
BERNARDI, D. Paternidade e cuidado: “novos conceitos”, velhos discursos. Psicologia Revista, [S. l.], v. 26, n. 1, p. 59–80, 2017. DOI: 10.23925/2594-3871.2017v26i1p.59-80. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/28743. Acesso em: 13 nov. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto.gov.br. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990a.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
BRASIL. Portal da Transparência – Registro Civil. transparencia.registrocivil.org.br. Disponível em: https://transparencia.registrocivil.org.br/registros. Acesso em: 13 Nov. 2021.
Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 3212/2015. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1999535>. Acesso em 13 Nov. 2021.
CÉSAR FIGUEIREDO DE QUEIROZ, Évanes. A responsabilidade civil por abandono afetivo dos filhos. jus.com.br. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90434/a-responsabilidade-civil-dos-genitores-por-abandono-afetivo-dos-filhos-em-cotejo-com-a-jurisprudencia-do-superior-tribunal-de-justica. Acesso em: 13 Nov. 2021
CONESA, Thaís. Paternidade ainda é tabu no Brasil. Pai Legal. São Paulo, 10 Jan. 2005, Disponível em: https://www.pailegal.net/veja-mais/ser-pai/analises/409-paternidade-ainda-e-tabu-no-brasil. Acesso em: 13 Nov. 2021.
CRISTINA, Ana; SCHLITHLER, Belizia; CERON, Mariane; et al. Gestão do cuidado: Abordagem familiar e clínica ampliada. [s.l.: s.n., s.d.]. Disponível em: https://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/pab/7/unidades_conteudos/unidade15/unidade15.pdf. Acesso em: 13 Nov. 2021.
DA CUNHA PEREIRA, Rodrigo. Direito de Família, coronavírus e guarda compartilhada. ibdfam.org.br. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1409/Direito+de+Fam%C3%ADlia%2C+coronav%C3%ADrus+e+guarda+compartilhada. Acesso em: 13 Nov. 2021.
DA CUNHA PEREIRA, Rodrigo. O contrato de geração de filhos e os novos paradigmas da família contemporânea. ibdfam.org.br. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1609/O+contrato+de+gera%C3%A7%C3%A3o+de+filhos+e+os+novos+paradigmas+da+fam%C3%ADlia+contempor%C3%A2nea. Acesso em: 14 Nov. 2021.
DA CUNHA PEREIRA, Rodrigo. Pai, por que me abandonaste? ibdfam.org.br. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/41/Pai%2C+por+que+me+abandonaste%3F. Acesso em: 13 Nov. 2021.
DRUMOND TAVARES, Amanda; DE MORAES MARTINS PEREIRA, Claudia. IBDFAM: A prisão civil por dívida de alimentos e o estado de coisas inconstitucional. ibdfam.org.br. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1655/A+pris%C3%A3o+civil+por+d%C3%ADvida+de+alimentos+e+o+estado+de+coisas+inconstitucional. Acesso em: 14 Nov. 2021.
FINCO, D. F. Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação infantil. Pro-Posições, Campinas, SP, v. 14, n. 3, p. 89–101, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643863. Acesso em: 13 nov. 2021.
FONSECA, Claudia. A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA. Revista Estudos Feministas, v. 12, n. Epub 12 Maio 2005. ISSN 1806-9584., p. 13–34, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/7BqFfPVPj5QjLfbVytx8DgQ/?lang=pt. Acesso em: 13 Nov. 2021.
FONSECA, Claudia. Deslocando o gene: O DNA ENTRE OUTRAS TECNOLOGIAS DE IDENTIFICAÇÃO FAMILIAR. Mana, v. 22, n. ISSN 1678-4944., p. 133–156, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/PtytHZxj5qvRMwdzLLjL4Mq/?lang=pt#. Acesso em: 13 Nov. 2021.
GONÇALVES, Cristiane. Interação pai-mãe-bebê: elementos para análise do papel da paternidade Florianópolis. [s.l.: s.n.], 2002. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/84319/189932.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 13 Nov. 2021.
MARTINS, Cristina; ABREU, Wilson ; FIGUEIREDO, Maria. Tornar-se pai e mãe: um papel socialmente construído. Revista de Enfermagem Referência, v. IV Série, n. No 2, p. 121–131, 2014. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3882/388239972016.pdf. Acesso em: 2 Nov. 2021.
MATOS, Mariana Gouvêa de ; MAGALHÃES, Andrea Seixas. Tornar-se pais: sobre a expectativa de jovens adultos. Pensando familias, v. 18, n. 1, p. 78–91, 2014. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2014000100008. Acesso em: 13 Nov. 2021.
MOURA, Solange Maria Sobottka Rolim de ; ARAÚJO, Maria de Fátima. A maternidade na história e a história dos cuidados maternos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 24, n. 1, p. 44–55, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932004000100006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 13 Nov. 2021.
OIT. Nota 6 – Licenças e responsabilidades familiares. Organização Internacional do Trabalho. 2011. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—ilo-brasilia/documents/publication/wcms_229658.pdf Acesso em: 30 out. 2021
ROBERTA, Tainá. A cultura do abandono paterno. Jornal A Verdade. Disponível em: https://averdade.org.br/2017/06/cultura-abandono-paterno/. Acesso em: 13 Nov. 2021.
STAUDT, Ana Cristina Pontello ; WAGNER, Adriana. Paternidade em tempos de mudança. Psicologia: teoria e prática, v. 10, n. 1, p. 174–185, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872008000100013. Acesso em: 13 Nov. 2021.
STJ. RECURSO ESPECIAL : REsp 1159242 SP 2009/0193701-9. Relatora: Ministra Nancy Andrigh. DJ: 26/11/2008. FlavioTartuce, 2012. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/assets/uploads/jurisprudencias/201205021525150.votonancy_abandonoafetivo.pdf. Acesso em: 14 Nov. 2021
THURLER, Ana Líesi. Homoparentalidades e heteroparentalidades: desafios à igualdade – Por Ana Liési Thurler. Jusbrasil. Disponível em: https://arpen-sp.jusbrasil.com.br/noticias/2369299/artigo-homoparentalidades-e-heteroparentalidades-desafios-a-igualdade-por-ana-liesi-thurler. Acesso em: 14 Nov. 2021.
THURLER, Ana Liési. Outros horizontes para a paternidade no século XXI?. Scielo Brasil, [s. l.], v. 21, 6 set. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v21n3/a07v21n3.pdf
THURLER, Ana Liési. Paternidade e deserção: crianças sem reconhecimento, maternidades penalizadas pelo sexismo. Sociedade e Estado, v. 19, n. 2, p. 501–502, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/6Pc7xdvz6yvjLmqSndT5frh/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 13 Nov. 2021.
NOTAS
- PATERNIDADE AINDA É TABU NO BRASIL. https://www.pailegal.net/, [s. l.], 10 fev. 2005.