Willis Santiago Guerra Filho
Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor Permanente no Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha. Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Direito, Doutor em Comunicação e Semiótica e em Psicologia Social/Política pela PUC-SP. Bacharel em Direito, Especialista em Filosofia e Livre Docente em Filosofia do Direito e Professor Titular de Direito Processual Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
O poder é realidade multifacetada, tendo como ambiência o contexto social. Há o poder das ideias, do saber, que se expressa como ideologia; há o poder econômico, que se manifesta na riqueza; e há o poder político, que se organiza, em sociedades complexas como a nossa na forma de Estado, através do Direito. O Estado congrega organismos de decisão, como o Congresso e o governo, bem como de execução, como o aparato burocrático, havendo ainda parte dele que se ocupa, a um só tempo, de ambas as tarefas, como é o caso do Poder Judiciário.
O poder é um daqueles fenômenos que permitem estabelecer uma vinculação entre a dimensão social e aquela natural, entre as quais nos situamos, enquanto seres humanos. É por demais conhecida a definição de Aristóteles, na Política (1253ª2f), do homem como zoon politikon, acrescentando que se distingue de outros “animais políticos” (melhor dizer “sociais”), como a abelha ou os lobos, por dotado do logos, dando-lhe a capacidade de falar e reconhecer o útil e justo, ou seja, fazer julgamentos, tanto morais e estéticos (ele diria poéticos), como políticos e jurídicos.
Se na Antiguidade o discurso, a moral, a poética, assim como o direito e a política encontram-se indissociavelmente ligados, nossa época, dita moderna, vai se caracterizar, dentre outras facetas, mas fundamentalmente, pela desvinculação que se opera entre elas, no discurso agora não mais político e (po)ético, mas sim científico, sobre a política e o que lhe é mais próprio: o poder. Há dois pensadores, cuja obra é particularmente significativa, para marcar essa transição da forma antiga para aquela moderna de compreender – e, logo, também, de exercer – o poder: Maquiavel e Hobbes.
Maquiavel, no célebre cap. XVIII de O Príncipe, após reconhecer o quanto é louvável que os governantes tenham uma conduta moralmente irrepreensível e cumpram com a palavra empenhada constata como “em nossos tempos” aqueles que agirem com astúcia superam com facilidade os que agem assim, de boa-fé. Em seguida, acrescenta haver duas formas básicas de luta para obter o que se almeja, sendo uma característica dos homens, aquela baseada nas leis, enquanto a outra é própria dos animais, por empregar a força. E se o ideal é que empregássemos o primeiro método, a realidade mostra que não podemos prescindir do segundo, donde ser necessário que os governantes saibam usar tanto um como o outro – lidando com os governados, portanto, como se fossem animais.
Hobbes envereda pela senda aberta por Maquiavel e outros como Jean Bodin, realizando obra que é um verdadeiro marco, no campo da filosofia política, no que foi seguido por toda uma plêiade de pensadores, sempre assombrado pelo “homem que é lobo do homem”. A seguir, porém, vamos tentar fazer vir à tona uma compreensão do poder – e, logo, da política – que o vincula ao próprio modo como se produz o sujeito humano, uma concepção positiva, que se acrescenta àquelas, mais corriqueiras, também mais negativas, por associadas antes aos diferentes modos como se subordina esse sujeito à vontade de outro(s).
O que se nos vai assim mostrar, na esteira de estudos como os de German Osvaldo Prósperi (“La máquina óptica: Antropología del fantasma y (extra)ontología de la imaginación”, Buenos Aires: Mino Dávila Editora, 2019) e Julian Brzozowski (“Eros e a paixão monstruosa”, Anacronismo e Irrupción. Revista de Teoría y Filosofia Política Clásica y Moderna, vol. 11, n. 20, Buenos Aires, 2021, p. 298-316), é a divergência que se prepara claramente em obras fundadoras da modernidade política e jurídica, como são as de Maquiavel e Hobbes, entre o que em nós é pensamento, artificialmente produzido pelo raciocínio enquanto encadeamento linear de razões, com as fantasias ou fantasmagorias geradas pela incidência dele em um corpo – ou a interferência nele do corpo, assim produzindo-se o campo da imaginação, do sonho, da ficção, onde habita um direito a ser reinventado, muito diverso do que decorre de fantasias que não se reconheciam como tais, os sonhos da razão que produzem monstros, para lembrar a gravura de Goya.
Um tal movimento pode ser melhor considerado reflexivamente pelo que Bakhtin conceitua como a atividade mental do eu e a atividade mental do nós (“Questões de literatura e de estética: a teoria do romance”. São Paulo: Unesp, 1993). Considera este autor, que a atividade mental do eu está voltada para o isolamento do indivíduo, o que gera a tendência a uma auto eliminação, por assim dizer, diante da inexistência da interação social, pois em não ocorrendo um rasgar dos véus que encobrem ideologicamente o sujeito, revela-se pouco provável a definição e sustentação de sua constituição. Por outro lado, a denominada atividade mental do nós empalma adequadamente com a harmonia de um modelo ideológico social que estabelece e suscita, por meio das interações cadenciadas pela alteridade, o lineamento da representação entre os sujeitos. De sorte que, quando o sujeito se constitui em relação com o outro, pelo diálogo em nível interno e externo, se torna imaginável transcender de um estado próximo ao do animal para o de sujeito – de outro modo, é a besta que se impõe, o monstro, lembrando com César Aira (“Diccionario inconcluso del narrador latino-americano actual”, Boletín de reseñas bibliográficas, ns. 9-10, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, 2006, p. 337) ser característica fundamental do monstro sua máxima individualidade e isolamento extremo: “El monstruo es único, no tiene com quién casarse ni con quién procrear descendencia. El monstruo es siempre como un símbolo de la extinción, porque el monstruo constituye una especie, pero una especie constituida por un solo individuo…”.
Em tratado versando sobre a relação entre moral e política, o filósofo ítalo-alemão Vittorio Hösle, em “Moral und Politik” (Munique: C.H. Beck, 1997, p. 250) associa a política com a erótica, enquanto fenômenos que se enraízam nos fundamentos biológicos da existência humana, donde se irradiam pelos mais diversos setores dessa existência, ensejando a possibilidade dela se tornar bestial, animalesca, monstruosa ou, ao contrário, sublime, quase divina. É que tanto a atividade erótica como aquela política estão relacionadas com a manutenção e reprodução da vida humana, com a superação da morte, mobilizando em doses variadas tanto o amor como o ódio. A diferença básica entre ambas estaria na circunstância de que na erótica se dá uma interação que, por exigir o contato corporal, tende a se restringir a um número mínimo de participantes, enquanto na política se busca influenciar a um número o maior possível de pessoas, com um mínimo de contato. Daí Elias Canetti iniciar sua obra fundamental – e fundante – de “antropologia literária”, sobre as massas e o poder, postulando que o homem, acima de tudo, teme o contato físico com os desconhecidos, por ser o desconhecido associado com a morte, e é sobre esse temor que, segundo ele, se erigem as estruturas de poder.
Isso não significa que o corpo deixe de ser implicado nas relações de poder. O corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração e revelação do poder social vigente. São clássicas as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em La société contre l’État, quando considera os rituais de passagem e iniciação das sociedades pré-estatais, ditas “primitivas” (mas que se mostram bem mais evoluídas que estas nossas assim autoproclamadas, do ponto de vista da preservação dos seus membros da violência exercida pelos que concentram o poder) – que normalmente envolvem alguma forma de mutilação ou “investida” dolorosa sobre o corpo do seu paciente, tatuando-o, queimando-o, cortando-o -, como uma forma de inscrição no corpos de cada uma das leis da comunidade, a começar por aquela proibição mais universal, a do incesto, especialmente com a mãe. A propósito, há o célebre texto de Lacan sobre a família, publicado em 1938 na Encyclopédie française (tomo VIII), quando trata do complexo de Édipo, referindo o “apoio sociológico” que as teses de Freud sobre as fantasias do inconsciente receberiam dos estudos enfeixados por Frazer em The golden bough, onde se reconhece no tabu da mãe a “lei primordial da humanidade”.
Não menos elucidativa é a investigação de Claude Lévi-Strauss sobre as estruturas elementares do parentesco, onde sustenta ter a proibição do incesto sua origem na natureza, embora seja consagrada em uma regra emanada do ambiente sócio-cultural, e que seria a primeira norma jurídica, a única simultaneamente natural e social. O civilista francês Jean Carbonnier, em obra se sociologia do direito (“Derecho flexible: para una sociología rigorosa de derecho”, trad.: Luiz Diez-Picaso, Madri: Editorial Tecnos, 1974, p. 87 e 88), refere a tese, mas não entende que haja nas sociedades ditas primitivas a consciência de um caráter especificamente jurídico da regra que torna “tabu” o incesto. Para os membros dessas sociedades a coisa ou pessoa afetada pelo tabu se torna intocável, como se fosse “uma marca que se imprime no ser (e esta é provavelmente a etimologia da palavra). Se experimenta um distanciamento, uma repulsa, sobretudo física, frente ao ser marcado. E esta repulsa é algo vívido, e não simplesmente uma máxima pensada” (Les structures élémentaires de la parente. Paris: P.U.F., 1949, p. 28 e seg).
Bem diferente são as coisas em sociedades já mais “evoluídas”, letradas, não mais igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel.
O caráter em si mesmo repressivo da escritura, especialmente aquele fonética, com alfabeto, é suscitado por J. Derrida em De La grammatologie, na esteira de J. J. Rousseau: “Mais racional, mais exata, mais precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma melhor polícia. Mas, na medida em que ela se apaga melhor do que qualquer outra diante da presença possível da voz, ela se representa melhor e lhe permite ausentar-se com o mínimo de danos. (…) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do canto, isto é, da origem viva da linguagem. (…) Correspondendo a uma melhor organização das instituições sociais, também dá o meio de dispensar mais facilmente a presença soberana do povo reunido” (trad.: Renato Janine Ribeiro e Míriam Schneiderman, São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 368 e 369). A representação abstrata através da escrita é empregada na elaboração de normas jurídicas na forma de decretos redigidos por representantes políticos que “falam”, i.e., escrevem e leem a Lex, enquanto os representados “emudecem”. Nessas condições, “o corpo político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento, e traz, em si mesmo, as causas de sua destruição” (Rousseau. Du contrat social. Livro II, cap. XI, apud Derrida, ob. cit., p. 363).
Em nossa sociedade, como disse Foucault, na famosa aula inaugural no Collège de France, “A ordem do discurso”, de 1970, “há juízes da normalidade em toda parte. Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do ‘assistente-social’-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, aí submete o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos”. Para uma representação literária dessas ideias, podemos remeter à obra de Franz Kafka.
O conto Na colônia penal (In der Strafkolonie), por exemplo, aborda exatamente esse ponto, quando nos apresenta um aparelho de punição que inscreve no próprio corpo dos condenados o crime que teriam cometido, com uma caligrafia complicada e indecifrável, causando um sofrimento enorme, o que conduziria o imputado à compreensão e arrependimento do erro cometido. Entre muitos aspectos suscitados no trabalho de Kafka, destacaria apenas a observação de que o inventor de tal máquina de punição é dito que era a um só tempo “soldado, juiz, construtor, químico e desenhista”, como que a dizer, tal como Foucault, que também a ciência, a tecnologia e até as artes estariam envolvidas no empreendimento repressivo do corpo, juntamente com poderes institucionais.
A modelagem que o poder impõe aos corpos é bem nítida nos militares, com sua postura “espigada”, esticados para cima, por estarem espremidos entre muros de proibições construídos para pautar seu desejo. Elias Canetti, na obra antes aludida, Masse und Macht (“Massa e Poder”), de 1960, nos fala de tais “muros” que os militares não podem alegar desconhecer e devem “se movimentar como se eles estivessem sempre ao seu redor. O aspecto anguloso do soldado é como um eco, em seu corpo, da dureza e da lisura desses muros; ele adquire algo de uma figura estereométrica”.
Um fato importante de disciplinamento dos corpos e seus desejos, tanto em corporações militares, como entre os membros de ordens religiosas, estudantes, empregados de hospitais e de empresas em geral, é o uso de uniformes. Nos ambiente de trabalho, quando não se prescreve o uso de uniformes, se proscreve o uso de um vestuário mais exuberante, que corresponda ao gosto do usuário, a seus desejos e espontaneidade, sem levar em conta prejuízos psíquicos daí decorrentes. Em geral, há ainda toda uma regulamentação não explícita a respeito do vestuário, determinando o tipo de roupa adequado a cada sexo, e em que pese a opinião do filósofo do direito Herbert L. A. Hart, em sua influente obra sobre o conceito de direito (“O conceito de Direito”, trad. A. Ribeiro Mendes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 188/189), no sentido de que as regras a respeito do modo de se vestir são desprovidas de importância para o direito, se pode observar repercussões no plano jurídico da recusa em obedecer tais regras, em determinadas circunstâncias. Exemplo disso é fornecido pelos próprios advogados, constrangidos a usar terno e gravata em nosso clima tropical, para não falar dos juízes, togados, por exigência da liturgia do exercício eficaz do poder, por meios encantatórios presentes em toda sociedade, desde aquelas ditas primitivas até aquelas que, como a nossa, se consideram desenvolvidas (ou, às vezes, o que é pior, “subdesenvolvidas”).
Pósgrafe
4
eu gosto do meu corpo quando está com o seu
corpo. É uma coisa tão nova e viva.
Melhores músculos, nervos mais.
eu gosto do seu corpo e do que ele faz,
eu gosto dos seus comos. de tatear as vért
ebras do seu corpo,a sua treme
-lisa-firmeza e que eu quero
mais e mais e mais
beijar, gosto de beijar issoeaquilo de você,
gosto de,lentamente golpeando o,choque
do seu velo elétrico,e o-que-quer-que freme
sobre a carne bipartida…. E olhos migalhas
de amor grandes e acho que gosto de ver sob mim
você vibrar tão viva e nova assim
4
i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows. i like to feel the spine
of your body and its bones,and the trembling
-firm-smooth ness and which i will
again and again and again
kiss, i like kissing this and that of you,
i like,slowly stroking the,shocking fuzz
of your electric fur,and what-is-it comes
over parting flesh….And eyes big love-crumbs,
and possibly i like the thrill
of under me you so quite new
27
um político é um ânus no
qual tudo se sentou exceto o humano
27
a politician is an arse upon
which everyone has sat except a man
29
piedade desse monstro em ação,humanimaldade?
não. O progresso é uma doença confortável:
tua vítima(morte e vida a salvo à pane)
brinca com a grandeza de sua pequeneza
— elétrons deificam uma gilete
em macroescala;lentes estendem
nãodesejo por ondeante ondequando até que ele
retorne ao seu nãoeu.
Mundo de haver
não é mundo de ser—piedade desta pobre
carne e árvores, pobres pedras e estrelas,mas nunca
desse ótimo espécime de hipermágica
ultraonipotência. Nós médicos sabemos
que um caso é sem remédio quando—olhe: tem uma puta
de uma vida boa paca aí do lado; vamos lá
.
29
pity this busy monster,manunkind,
not. Progress is a comfortable disease:
your victim(death and life safely beyond)
plays with the bigness of his littleness
— electrons deify one razorblade
into a mountainrange;lenses extend
unwish through curving wherewhen till unwish
returns on its unself.
A world of made
is not a world of born—pity poor flesh
and trees,poor stars and stones,but never this
fine specimen of hypermagical
ultraomnipotence. We doctors know
a hopeless case if—listen:there’s a hell
of a good universe next door; let’s go – poem(a)s, e. e. cummings. [organização tradução e notas de augusto de campos]. campinas: editora unicamp, 2011