Neoliberalismo no Chile: de cobaia a tumba do modelo

Franco Alejandro López

Onze pontos percentuais de diferença separaram a vitória de Gabriel Boric, com 55% dos votos, de José Antonio Kast, com 44%, o que equivale a pouco mais de um milhão de votos. Um triunfo sólido para o Chile, um país em que o padrão eleitoral é pouco mais de 15 milhões de eleitores, mas no qual a metade dos inscritos não participa das eleições.
Foi de fato a eleição mais importante e com maior mobilização desde o fim da ditadura, em 1990, e após o retorno à democracia. Em jogo estava também o destino da nova Constituição que substituirá à de Pinochet, promulgada em 1980. Kast, defensor do legado do ditador, já tinha manifestado que não facilitaria os trabalhos finais nem estava disposto a estender os prazos que a Convenção Constitucional já antecipou que serão necessários.
Desta maneira, no pleito que definiria não apenas o próximo período presidencial, assim como também o futuro da Constituição, se enfrentavam duas caras do Chile: uma representada por um ex-dirigente estudantil de 35 anos, que se fez conhecido nos protestos massivos dos universitários de 2011 que exigiam uma educação pública e gratuita eliminada justamente pela ditadura. A outra, encarnada por um ex-deputado ultradireitista, defensor do ‘legado’ militar e do modelo econômico neoliberal, imposto a sangue e fogo durante os 17 anos de Pinochet no poder.
Todavia para explicar o desenlace da última eleição presidencial é necessário se situar na história dos últimos 30 anos no Chile. No retorno à democracia, quando após o plebiscito que colocou fim à ditadura militar, nasceu a denominada Concertación de Partidos por la Democracia. Um conglomerado de partidos que desde o início se autodenominavam como “centro-esquerda”, próximo à socialdemocracia europeia e que teve como selo político a exclusão do Partido Comunista do Chile.
Essa aliança foi a vencedora da consulta popular que a ditadura convocou em 1988, quando configurou-se a transição à democracia. Nesse momento, o regime militar estava acuado por protestos e atentados e havia perdido o apoio dos Estados Unidos, que já tinham cancelado todo o aporte econômico e militar a Pinochet. Uma transferência de poder que tinha como característica central ser conciliadora, sem oferecer grandes mudanças econômicas, e com Pinochet eleito como senador vitalício.
Uma concepção da democracia que, desde a ótica pós-estruturalista, a autora Chantal Mouffe define desta forma:
Alegando que o modelo confrontacional da política e a oposição esquerda-direita tinham se tornado obsoletos, celebrando o “consenso no centro” entre centro-direita e centro-esquerda, o então chamado “centro radical” promoveu uma forma tecnocrática de política de acordo com a qual a política não seria mais um confronto partidário, mas a administração neutra dos negócios públicos. (MOUFFE, 2019, p. 23)

Foi efetivamente uma administração que, além de neutra, pulverizou os movimentos sociais. Tanto que se manteve a Constituição criada por Pinochet em 1980 e o sistema político chamado binominal. Desta forma, as duas forças políticas pertencentes à centro-Esquerda e à centro-Direita, que eram consideradas como legítimas e não radicais, administraram o modelo econômico excluindo grupos políticos dissidentes ao sistema que pudessem ameaçar a ordem econômica. Mesmo com nomenclatura diferente, ambas não se diferenciavam em sua essência.
A Concertación governou não apenas sem grandes mudanças ao modelo neoliberal, como também aprofundou o mesmo. Conjuntamente, no início da década dos 90’, a coligação optou por não contestar o Consenso de Washington e inclusive definiu o que chamaram de “mudança em continuidade”, segundo a expressão cunhada pelo economista chileno Ffrench-Davis. Em outras palavras, um oximoro que buscava manter nevralgicamente o sistema e, a com a chegada do crédito, aparentar uma melhoria de vida das pessoas.
Nos dois primeiros períodos após a ditadura, o governo foi comandado pela Democracia Cristã, partido que apoiou ativamente o golpe contra Salvador Allende em 1973 e que no exterior sempre esteve no espectro da direita política e econômica, mas que no Chile se definia como sendo de centro-Esquerda.
Nessas administrações, aos poucos, a participação política dos chilenos nas eleições foi diminuindo conforme os projetos políticos não pareciam contestar o cenário internacional que dirigia os destinos do país. Tal como Mouffe descreve:

A globalização neoliberal foi vista como um destino que tínhamos de aceitar, e as questões políticas foram reduzidas a meras questões técnicas, com as quais os especialistas lidariam. (MOUFFE, 2019, p.23)

Ffrench-Davis explica que, durante esses anos, o governo aproveitou-se da bonança que veio com o aumento do preço das commodities. No caso chileno, o cobre era o principal produto de exportação e que gera até hoje bons dividendos. Assim, segundo o economista, iniciou-se:

(…) uno de los períodos de mayor prosperidad de la historia económica de Chile, con una tasa de crecimiento promedio anual de 7% que se sostuvo entre 1989 y 1998, marcando un claro quiebre en la tendencia histórica de expansión del PIB, asociado a una alta formación de capital, y a un ambiente de estabilidad generalizado hasta 1998. (FFRENCH-DAVIS, 2003, p.183).

Durante esse tempo, que poderia se catalogar como de ampla prosperidade nas categorias emprego e chegada de capital estrangeiro, provocou-se também um aumento progressivo da desigualdade e da concentração da riqueza. Logo, no início do século XXI, o cenário se agravou ainda mais, porém desta vez com a chegada ao poder de dois presidentes que militavam no Partido Socialista, Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018). Estes que pertenciam ao grupo dos autodenominados “renovados” e que regularmente são categorizados como sendo de centro-Esquerda, na realidade, terminaram por incorporar maiores privatizações do pouco que ainda permanecia em posse do Estado chileno.
Entre os exemplos mais destacados está o absoluto domínio dos privados por sobre direitos básicos, como a água, da mesma forma que acontece com a eletricidade e a educação superior. Uma lógica que transforma direitos sociais em bens de consumo. Como exemplo está a educação, que permaneceu ancorada na Constituição como sendo responsabilidade dos cidadãos, pais e não do Estado, que criou diversas formas apresentadas atualmente como inovadoras no Brasil – entre elas o sistema de voucher, mas que de modo concreto configuraram uma realidade desastrosa.
Para ilustrar este cenário, citamos como exemplo o governo do ex-presidente socialista Ricardo Lagos. No seu mandato, as transferências do Estado dirigidas aos administradores privados da educação alcançaram uma cifra próxima aos US$ 2,5 milhões. Em um período anterior, entre 1994 e 2003, os empresários da educação já tinham sido beneficiados com isenções de impostos que chegaram a US$ 28 milhões. Desta maneira, o investimento da educação pelas próprias famílias alcançou a cifra de 3,52% do PIB, enquanto o governo destinava 4% do PIB, sendo que metade desta porcentagem era usada para subvencionar ao mesmo tempo o setor privado. (GOBIERNO DE CHILE, 2005, p. 19-20).
Situação semelhante vivencia-se com o sistema da previdência, que é também permanente referência do atual governo brasileiro. Totalmente privado e paupérrimo, o sistema de Associação de Fundos de Pensões (AFP) foi parte central da estrutura econômica da ditadura. Criada em 1981 por José Piñera, irmão do presidente Sebastián Piñera, tinha como eixo um sistema de capitalização absolutamente individual, na qual o Estado ou os empregadores não tinham qualquer participação. A proposta era que o dinheiro dos trabalhadores seria direcionado para investimentos que ativariam a economia nacional, ao mesmo tempo em que estimularia o crescimento do país. Todavia, o valor que correspondia à aposentadoria dos trabalhadores foi sempre enviado a fundos privados do sistema que permanentemente eram investidos fora do Chile. Atualmente, o resultado do sistema é que as pensões dos chilenos apenas conseguem chegar à metade de um salário mínimo no país.
Uma situação que explicita de melhor maneira o fracasso do sistema são as pesquisas de autores que indicam que a taxa maior do suicídio no Chile corresponde aos idosos a partir de 60 anos. E é a eliminação deste sistema com uma progressiva estatização dos fundos de pensões uma promessa central do programa do recém-eleito presidente do Chile, Gabriel Boric.
No enfrentamento a este modelo previdenciário é que nasceu também um dos grupos mais representativos do Estallido Social que se originou em outubro de 2019 e que aglutinou diversos outros movimentos contra o modelo neoliberal, como estudantes, ambientalistas, feministas e sindicatos. Os protestos, que duraram meses, atravessaram todo o país, de Norte a Sul do país, sem que nenhuma oferta conseguisse deter a união popular que cresceu proporcionalmente em todo o país. Foi apenas a proposta de um plebiscito para uma nova Constituição que encontrou consenso absoluto. Desta maneira, em 25 de outubro de 2020, após um ano de pressão popular nas ruas, foi realizado um plebiscito para optar por uma nova carta magna. O resultado ganhador foi a opção Apruebo com mais de 80% dos votos. O que veio posteriormente foi o início de um processo constitucional que tem como base a legitimidade de possuir representantes populares, dos povos originários e ser, por regra, paritária.
Nos meses posteriores, consolidou-se a vitória da jovem Irací Hassler para a prefeitura de Santiago, a única prefeita comunista liderando uma capital em toda a América Latina, e a irrupção em julho de 2021 de Elisa Loncón Antileo, acadêmica Mapuche, que foi eleita como a presidenta da Convenção Constituinte.
Desta maneira, o processo que explica a vitória de Gabriel Boric é a culminação de um processo de anos de resistência frente a um modelo imposto pela força, quando o Chile foi usado como cobaia e experimento econômico. Sendo inegável que o inimigo que concentrou todos os olhares foi sempre o modelo neoliberal que atravessa a vida de todos os chilenos.
Três dias antes da eleição, um fato terminou por ser simbólico do final da campanha. Lucía Hiriart de Pinochet, viúva do ditador, faleceu aos 99 anos de idade. Embora tenha morrido impune e em casa, acompanhada dos seus familiares, a sua morte pareceu ser um precedente da eleição na qual o Pinochetismo teve seu último suspiro. Começava aí um novo ciclo histórico. Ou, realmente a verdadeira transição à democracia: participativa, real e pluralista, desta vez tendo como eixo principal desmantelar o modelo neoliberal.

REFERÊNCIAS

FFRENCH-DAVIS, Ricardo. Chile, entre el neoliberalismo y el crecimiento con equidad. IN: Nueva Sociedad. N. 183, 2003, pag. 70-90.

GOBIERNO DE CHILE, GANE – Gran Acuerdo Nacional de la Educación, Julio de 2011. Disponível em: http://data.fech.cl/files/2011/07/GANE.pdf. Acesso em 20 mai. 2021.

MOUFFE, Chantal. Por um populismo de esquerda. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2019. 153 p.

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