De Goethe ao Gueto Latino

vito antico wirgues

O mito fáustico de Goethe embalou as diretrizes chocas de um mundo que, aparentemente, permaneceria materializado entre um enclave; de um lado, a vida medieval e o seu modo cotidiano cristalizado, sólido; de outro, o desejo de alçar o além do crescimento, de explodir a tacanha indumentária moral e econômica da época, a destruição do sólido antigo para o aéreo fragmentar dos tempos modernos. Viviam, assim, o pequeno e o grande mundo no Fausto de Goethe.
Escrito ao longo de 60 anos, o Fausto, em declinação histórica pelas mãos de Goethe junto ao caminho ideológico que chamamos hoje de modernidade ou homem moderno, marcou a fragmentação da sociedade europeia em plena efervescência plural de costumes, em rupturas morais, religiosas, comportamentais e econômicas, que foram da manufatura até a industrialização eclodida em símile pré-metropolitana, ou seja, em direção à fervura gestacional de um novo alguém para uma nova concepção citadina – um alguém afeito de liberdades e direitos em relação ao movimento concreto, eterno e fixo da natureza, que viria após a revolução francesa e a maturidade capitalista, tornar-se dotado de individualidades fragmentadas pela contemporaneidade, e pertencente a si como um sujeito espelhado e livre para uma gama de direitos, duplos; de um lado a capacidade de criar uma nova concepção de mundo; por outro, o peso responsável de que o mesmo se destruirá, como ao prenúncio de Fausto: “Duas almas, oh, coexistem em meu peito”. Cria-se, então, um alguém-cidadão do novo mundo, afeito de grandes centros e cidades, consequentemente, um vivedor de tudo para satisfação própria em meio a visão cataclísmica que ora andávamos, ou melhor, corríamos, para uma tragédia cheia de “nadismos”.
O Fausto de Goethe tem a ver com a velocidade, ritmo, a força motriz para um ponto de chegada inexistente. Em outras palavras, caminha para a imagem utópica da satisfação humana e a grande pergunta ascendente em todas as eras, qual o sentido, para que e para onde? Para Goethe, essa imagem, mais do que a fragmentação de uma nova concepção de mundo em devir; faz-se a fragmentação do próprio caminho, do horizonte, em ação fomentadora de tragédia, porém, uma tragédia criadora. Eros e Thanos, o criador e a criatura-criadora, de um ponto A para um ponto B, uma forma velocidade e um conteúdo temporal para o próprio objeto formador de quilometragem, a velocidade.
E após a tomada desse grande poderio velocista, vamos em direção ao crescimento estilhaçado, já mais elevado ao que podemos chamar de nossa realidade, o mosaico “moderno” latino, a tecnologia de um sentimento silício desbragado em desinformação e Fake News, a cultura oral, a desigualdade batendo no batente solevado, e o mundo em fragmento, a perdição em meio ao desenvolvimentismo, até chegarmos à falta de reconhecimento e sentido de nossas próprias tragédias, fatos e notícias, essas, que fomentamos – de fato, não podemos negar que de alguma forma conseguimos costurar esses fragmentos pela cultura, um outro tipo de criação fáustica. E o mundo, apesar de grandiloquente, vai-se esvaindo por um conceito simples, feito uma caricatura de um “legal” que soa de modo técnico e sem emoção, uníssono de um lamento ditador, mais que máquina destrutiva, máquina odiosa, que acontece, como as palavras pseudofáusticas proferidas por Bolsonaro após o desenvolvimento de 100 mil mortes provocadas pela Covid-19 no Brasil:

  • E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.
    E logo após, por alguns breves meses faustomessiánicos, de mortes a quase 560 mil pessoas traduzidas em pseudovidas pelo poder público, tem-se a ironia revolucionária de um sentimento criador à nova República, de Anti-Maricas, diante o povo estadunidense frente a derrota de Trump e a eleição de Biden: “Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora!”. Duas revoluções, óh, coexistem em meu peito. E a ironia sucede-se em paródia, tradução.
    O poder falso do criador fascista é transformado em argamassa cotidiana junto ao relapso de outras criações mitopoéticas e infraestruturais de tristezas históricas, que, cada vez mais, desaguam em consequência ao nosso mito fáustico de cada dia. Ser ou não ser pelo tragédia? Afetos de poder convertidos em danos concretos, físicos, durante a intimação capital de um tempo velocista, como a própria morte e o desejo técnico de produção; como o fogo culpado nas regiões do Pantanal e da Amazônia, a corrupção clara e oculta tocante as vacinas, o desmatamento em linha de peixe deflorado violentamente pelas faunas e floras, o fervo em Altamira e Anapu, o Amapá em tateio escuro, e a morte de João Alberto, homem negro espancado covardemente no estacionamento de um supermercado pela sinfonia obsoleta de um Fausto-racista e um Mefisto-capitalista.
    De Goethe ao gueto, tem-se mais que a criação destrutiva. E…
    A lista segue-se por um movimento de feição surrealista de cadáver requintado costurado aos trópicos latinos. Movimento surrealista factual noticioso, cotidiano. Deus e o Diabo no Fausto dos Tropos Culturais. Escreveria Goethe em seu arquetípico Mefisto-fáustico, para a figuração de um novo renascer?

Aquele sino, o doce perfume daquelas tílias,
Me envolvem como uma igreja ou uma tumba

Quem nos fomentará?!
O carnaval se aproxima, os batuques se rendem como rendas. Chegam-se os sinos leves de soar junto a memória, o gueto está próximo, a periferia também. Fausto estira o couro, mais uma morte; deve-se haver mais de uma mão embatucada, tocadora. O ambiente se enreda por uma orgia artesanal de culturas. Mais uma vida. Estira-se o fogo. Aos poucos, vê-se o nascimento sacro profano de um novo tambor, mestiço em sua forma, variante a sua origem. Um novo mundo. Fausto quer destruir de outra maneira. Criar de outro modo.
Ele, Fausto latino, preto autóctone, filho onceiro do exu festivo e terreirizado pelo encantamento de um ser ético vivente, quer o movimento dos outros, e deseja-se, à pergunta para aquém da ideologia des-moderna de um legítimo andante: E agora, o que seremos por essas danças-tragédias?

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