A Revolução Gregoriana

A primeira e também principal revolução foi uma revolução essencialmente jurídica, jurídica e teológica, teológico-política, impulsionada pela união da tradição filosófica especulativa grega com aquela pragmática romana sob os auspícios da espiritualidade judaico-cristã. As revoluções modernas só serão possíveis por antes ter havido esta primeira, cuja realização exitosa demonstra haver a possibilidade mesma de se realizar velozmente transformação tão profunda e universal como propõem as revoluções, como também é a própria ideia de modernidade que será gestada nesta primeira revolução, ao provocar esta alteração tão inédita, inaudita, quanto radical, na forma mesmo como se percebe a relação mais fundamental dentre todas, que é a nossa relação com o tempo. Esta revolução a que aqui referimos é mais conhecida como Reforma Gregoriana, devida ao Papa Gregório VII, e o seu “atestado de nascimento” é o Dictatus Papae, isto é, o texto ditado pelo Papa, o Manifesto Papal que o então Santo Padre tornou público ao enviá-lo por meio de carta em dezembro de 1075 ao Imperador do Sacro Império Romano-Germânico naquela ocasião, Henrique IV, exigindo a sua subordinação e a de todos os bispos imperiais, logo, de todo o prelado, ao bispo de Roma, ou seja, ele, o Papa, num gesto que se nos afigura como um forte candidato a ser considerado o de maior audácia já praticado por um ator político em toda a história, considerando o poderio material de que dispunha o Imperador, comparado com aquele meramente espiritual, moral, que detinha o Papa. Aqui é preciso lembrar que toda a estrutura de poder espalhada pelos vastos domínios do Império era administrada pela jurisdição episcopal, donde ser crucial para o exercício do poder de império decidir quem seria investido como bispo. De fato, com tal determinação, o Papa estava destituindo o Imperador de seu poder temporal, a pretexto de uma reivindicação de garantia de um poder espiritual que seria prerrogativa papal. A resposta do Imperador então não poderia ser outra que não o “descende, descende”, expressão que consta do final de sua carta, exigindo que o Papa descesse de sua cadeira, “para ser amaldiçoado por todas as eras”. A reação dos bispos não foi diferente, pois em carta vão concluir dizendo: “como o senhor publicamente proclamou, (que) nenhum de nós será mais um bispo, da mesma forma de agora em diante o senhor não será mais o papa para nós”. Gregório então, para começar, excomunga e depõe Henrique, retirando a autoridade com a qual ele se impunha sobre os barões germânicos que estavam dispostos a se rebelar contra ele. Estava instaurada a Querela das Investiduras. Dois anos depois, Henrique teria que percorrer o célebre Caminho a Canossa, para pedir o perdão do Papa, já previamente acordado pela intermediação de Matilde de Canossa e de Hugo, então Abade de Cluny, mas dado só após uma espera de três dias do Imperador, na neve, de joelhos. E a presença do Abade de Cluny no episódio não é causal, pois representava o pioneiro sistema de mosteiros cluniacenses, que se espalhou pela cristandade ocidental ao longo do século X e início do XI, com o apoio dos imperadores e barões locais, para pacificar as relações sociais fora dos feudos, viabilizando assim o desenvolvimento das cidades, ao estabelecer um regime semelhante àquele prevalecente no Império Romano do Oriente, depois denunciado como ‘cesaropapismo’. Cluny foi a primeira corporação translocal, oferecendo um modelo de governo hierárquico que seria adotado pela Igreja Apostólica Romana para se tornar literalmente Católica, universal, modelo este que depois será adotado pelas forças que formarão os estados nacionais, mas só depois de afirmado e aperfeiçoado graças à revolução gregoriana. Este aperfeiçoamento decorre da determinação, contida em uma das 27 proposições de que consistia a referida Bula ou Manifesto Papal de 1075, a de número 7, segundo a qual somente ao papa “era dado elaborar novas leis de acordo com as necessidades dos tempos”. Os tempos então, sendo novos, exigiriam novas normas, e esta concepção de renovação dos tempos é em si a grande novidade, a saber, uma concepção de história que não a tem como um caminho descendente de perdição e miséria até o momento insuportável em que viria o juízo final salvador, mas sim como uma via ascendente de progresso em direção ao salvador que se encontra no alto, não embaixo, nos infernos, como tão bem representa o esforço de se construir as catedrais góticas, com sua estrutura de torres que se elevam e são projetadas para serem edificadas ao longo de gerações, oferecendo-lhes abrigo, consolo e proteção, fora dos muros feudais, nas grandes cidades que em torno delas se desenvolverão. E as novas leis serão então feitas por uma autoridade legiferante, por meio de sua vontade, que é a do representante, o vicarius, o Vigário de Deus, o qual com Gregório deixa de ser o Imperador, como até se entendia, e passa a ser o Papa. Vai então se iniciar a elaboração de um direito novo, o Direito Canônico, com normas que serão inseridas e acomodadas com aquelas já antigas, costumeiras, que em caso de conflito, no entanto, irão ceder frente às mais recentes, por elaboradas pautando-se na busca pela verdade, num gesto que é muito típico de toda revolução, pois como o seu nome mesmo indica, pela descendência da astronomia, é um movimento de retorno do que antes já se passou, mais antigamente: a concepção teológica que se vai então defender para fundamentar as concepções novas será então tida como melhor por mais próxima daquelas dos primeiros tempos, agora repristinadas, a exemplo do entendimento de um apologeta como Tertuliano, advogado, defensor da fé cristã perante o Direito romano, quando não considerava o cristianismo uma religião lícita, propugnando que Cristo teria dito ser a verdade, não o costume. O Direito romano será recuperado de onde fora desenvolvido e preservado, no Império Romano do Oriente, no Corpus Juris Civilis, que passa a ser estudado como se lá estivesse contida a ratio scripta, a própria razão escrita, assim como na Bíblia estavam as escrituras sagradas: é o renascimento que já se inicia, em pleno começo do século XII, na primeira Faculdade laica, a de Direito, em Bolonha, com Irnério à frente, iniciando a chamada Escola dos Glosadores, os comentadores do corpo legislativo romano, de onde extraiam respostas a serem dadas aos problemas novos que surgiam em uma sociedade em franco desenvolvimento econômico, graças à urbanização crescente – nem que para isso fossem necessárias as chamadas ‘interpolações’, isto é, inserção de textos novos entre os antigos, que até hoje tanta dificuldade trazem para quem se dedica a estabelecer o que de fato é originalmente antigo. E não por acaso é também em Bolonha que por volta de 1140 é realizado um dos maiores feitos intelectuais de que se tem notícia, a obra do monge Graciano, Concordantia Discordantia Canorum, “Concordância de Cânones Discordantes”, coletando, analisando e compatibilizando aproximadamente 3.800 textos canônicos, acumulados desde os primeiros tempos da Igreja. Para isso, emprega o método das distinctiones ou divisões, já prenunciando o formalismo que será tão característico do modo moderno, científico, de pensar, analiticamente, o qual, no entanto, será melhor desenvolvido no âmbito de outras discussões, ou querelas, como então se denominavam, seja no âmbito metafísico-teológico, como é o caso da Querela dos Universais, em que se destaca como revolucionária a solução da distinção formal dada por John Duns Scot (ou Scotus), seja naquela mais teológico-(jurídico)-política, da chamada “Querela da Pobreza Franciscana”, que será exemplarmente enfrentada por um confrade posterior de Scot, Guilherme de (ou William of) Ockham (ou Occam). Mas esses são assuntos a serem tratados em outro momento, em separado. Por ora finalizaria lembrando, com Foucault, quando em suas célebres palestras na PUC-Rio, “A Verdade e as Formas Jurídicas”, aponta a origem da ciência moderna – e, logo, do que é central na modernidade – no processo inquisitivo medieval, regulado pelo direito canônico, no âmbito da Igreja medieval, e dela transposto para os Estados Modernos, com suas disposições probatórias determinando e conduzindo uma investigação de fatos que comprovassem o que verdadeiramente ocorreu. E isso em substituição ao que antes da Revolução Gregoriana era praticado, com a benção de autoridades eclesiásticas, por aquelas temporais, como sendo “Ordálias”, palavra derivada daquela germânica para os chamados “julgamentos de Deus” (Gottesurteile), que não passavam de formas supersticiosas de se decidir sobre a culpa ou responsabilidade de quem fosse acusado da prática de um ilícito, submetidos a provas de fogo ou de afogamento para ser inocentado caso escapasse com vida. Para um aprofundamento do quanto aqui tratamos, a obra de referência seria aquela de Harold J. Berman, “Direito e Revolução. A formação da Tradição Jurídica Ocidental”.

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