MACBETH: A INCAPACIDADE DA VIOLÊNCIA FÍSICA LEGITIMAR A AUTORIDADE JURÍDICO-POLÍTICA

Mara Regina de Oliveira
Faculdade de Direito da PUC-SP
Faculdade de Direito da USP

Resumo: Este artigo intenta fazer um estudo do tema da legitimidade jurídica a partir de um diálogo interdisciplinar entre a Filosofia do Direito e a peça shakespeariana Macbeth. Partimos de um estudo da relação existente entre a obediência jurídica e o poder do discurso persuasivo, que se vale de um exercício de violência simbólica. Veremos como o fato de Macbeth abusar da violência física e ter culpa moral pelo assassinato de Duncan impedem que ele institucionalize a sua condição de governante.

Palavras-chave: violência, poder, autoridade, Shakespeare, legitimidade.

Abstract: This article aims to make a study of the theme of legal legitimacy from an interdisciplinary dialogue between the Philosophy of Law and the Shakespearean play Macbeth. We start from a study of the relationship between legal obedience and the power of persuasive discourse, which is used as an exercise of symbolic violence. We will study how Macbeth’s abuse of physical violence and moral guilt for Duncan’s murder prevent him from institutionalizing his status as ruler.
Key words: violence, power, authority, Shakespeare, legitimacy.

INTRODUÇÃO

Ele está aqui, por dupla confiança ao meu cuidado:
Primeiro, sou seu súdito e parente –
Ambos são contra o ato. E, hospedeiro,
Devia interditar o assassino,
E não tomar eu mesmo do punhal.
(Macbeth, Ato II, cena 7)

      O tema da legitimidade jurídico-política é um dos mais relevantes dentro da seara da Filosofia do Direito, por justificar o problema da obediência legal. Este estudo investiga, em uma perspectiva interdisciplinar, como o tema da legitimidade do poder jurídico, da violência e o aspecto político do homem perpassam pela obra de Shakespeare, evoluindo em complexidade, com o passar dos anos e com o seu amadurecimento político. Existe, nas narrativas shakespearianas, a percepção de que o abuso nesta relação, por parte dos governantes, pode provocar uma ruptura subversiva dos subordinados. 

Nas peças inspiradas na história romana, nas peças históricas e em várias tragédias, há um aprofundamento do estudo crítico do tema do poder, descolado da visão medieval, em virtude delas não se vincularem, diretamente, a realidade inglesa da época, ainda calcada na ideia de direito divino. Macbeth espelha, de um ponto afetivo e racional, com excepcional detalhamento didático, todas as etapas pragmáticas que geram a crise legitimidade político-jurídica, provocada pelo abuso humano, que faz da violência um ilimitada um suporte frágil para a relação de poder, com a posterior ruptura da relação autoridade/sujeito. Não há a defesa de uma ideologia específica, mas a indicação de elementos pragmáticos básicos do poder, que afetam todas as diferentes vertentes políticas, sem exceção.
A legitimidade, pela ótica shakespeariana, não estaria apenas fundada em elementos religiosos, nem na regularidade do procedimento de instituição do poder, mas, também, em sua fruição interativa. Nosso estudo objetiva tornar evidente que, na tragédia Macbeth, uma nova visão interativa do poder está presente e uma ideia de legitimidade é sustentada pelo equilíbrio da ação entre governantes e governados, e não apenas pela visão teológica unilateral dominante nos cenários oficiais da época.
Nossa metodologia de análise será baseada no diálogo interdisciplinar que relacionará teorias jurídico-críticas à análise da tragédia Macbeth. O estudo interdisciplinar, que relaciona direito e arte, está presente na seara do enfoque teórico zetético jurídico, como forma profícua da expansão da pesquisa jurídica. Ele não se reduz a uma mera justaposição de discursos, pois indica a formação de um novo diálogo crítico que mescla elementos da linguagem teórica e da linguagem artística. Ao contrário dos estudos teóricos dogmáticos e práticos, esta forma de reflexão não se ocupa das questões ligadas a decidibilidade de conflitos. Em caráter distinto, está vinculado com a ampliação crítica dos conhecimentos em torno do fenômeno jurídico, focando questões sociais, políticas, filosóficas e estéticas. No entanto, estes enfoques acabam se relacionando, na medida em que não é possível desenvolver uma hermenêutica dogmática prática, sem que haja uma visão do conhecimento de toda a complexidade que cerca o fenômeno jurídico. Daí a necessidade de valorizarmos um estudo interdisciplinar e crítico no seu campo temático.
Em nossa análise detalhada de Macbeth, associada a uma teoria pragmática do poder, evidenciaremos como a violência física exacerbada não pode sustentar a legitimidade da obediência jurídico-política. A obediência depende do controle da seletividade da ação do sujeito, que indica a relação de poder e se vale do exercício da violência simbólica e não da violência física ilimitada. O atormentado rei Macbeth não consegue institucionalizar a sua condição de governante – autoridade meta-complementar, já que, após assassinar o rei Duncan, torna-se incapaz de exercer a violência simbólica, que deveria dissimular suas intenções sangrentas. Acaba por expô-las de forma abusiva, gerando uma mortal crise de legitimidade jurídico-política. Antes de entrar na análise da obra, iremos abordar alguns aspectos centrais da visão pragmática da legitimidade jurídico-política. Este artigo amplia as análises interdisciplinares feitas em quatro peças no livro de nossa autoria Shakespeare e o Direito. (OLIVEIRA, 2015, 151p.).

1.ABUSO DE PODER E DESAFIO À AUTORIDADE DA LEI

Em um breve esclarecimento teórico, do ponto de vista pragmático, observamos que as normas jurídicas são discursos que instituem relações autoridade/sujeito, localizadas no campo da interação comunicativa. depende de uma institucionalização a nível social da própria relação de autoridade, que deve neutralizar o dissenso e as possíveis reações sociais contrárias. É neste ponto que podemos identificar, com clareza, a relação existente entre direito, poder e comunicação, na medida em que a relação de autoridade não preexiste à própria interação, pois ela se constitui propriamente durante o processo interativo. Ela não existe a partir de uma pretensão do editor normativo de impor uma relação complementar de superioridade, mas na medida em que o sujeito também estiver disposto a se colocar nesta condição subalterna. O poder não está unicamente nas mãos da autoridade, não é uma coisa que ele tem, portanto. Ele atravessa e ao mesmo constitui a própria relação autoridade/sujeito. (FERRAZ JR., 1978, p. 109).
Neste sentido, vemos que tanto o relato como o cometimento das mensagens normativas implicam em relações de poder, entendidas como controle de seletividade do editor normativo em relação aos endereçados sociais. A complementaridade do editor normativo é garantida pela institucionalização do controle da seletividade das reações dos endereçados sociais que identificam as normas estatais como sendo juridicamente válidas em detrimento das demais. Por isso, é extremamente importante que ele leve em conta as reações dos chamados endereçados sociais, que podem confirmar, rejeitar ou desconfirmar a mensagem normativa. Tanto a confirmação (licitude) como a rejeição (ilicitude) reconhecem o cometimento meta-complementar da norma jurídica. (FERRAZ JR., 1978, p.109).
No entanto, a constante possibilidade de haver reações desconfirmadoras torna inevitável o confronto entre direito e poder, visto que ela constitui uma situação-limite em que os endereçados sociais deixam de reconhecer a relação complementar estabelecida no cometimento das normas jurídicas, não mais assumindo a condição de sujeitos da relação. Nesta situação, os endereçados sociais eliminam o controle de seletividade que o editor normativo tenta realizar. Este tem uma expectativa predeterminada de que a relação de autoridade, que ele estabelece, seja vista como uma estrutura de motivação da seletividade do endereçado que, de fato, passa a possuir duas alternativas apenas: confirmar ou rejeitar a mensagem. No entanto, aquele que desconfirma a norma desilude totalmente esta expectativa, pois age como se a autoridade, e os atos de coação que ela determina, não existissem, como estratégia de desafio ao aspecto cometimento de suas normas. O conteúdo das normas jurídicas e a relação complementar que elas estabelecem deixam de influenciar as opções e deixam de ser uma estrutura de motivação para a seletividade dos endereçados, que não mais veem a possibilidade de aplicar sanções como uma alternativa a evitar.(OLIVEIRA, 2006, p. 104).
Aquele que desconfirma uma mensagem normativa não mais se sente obrigado a se submeter à autoridade porque não a reconhece como tal, na medida em que ele próprio não mais se assume como sujeito da relação. Neste sentido, ela faz com que o editor perca, pelo menos momentaneamente, o seu controle sobre os endereçados. Se for bem sucedida, ela pode criar uma nova relação de poder, paralela à primeira, em que o sujeito receptor das mensagens normativas estatais, passa a ser autoridade emissora de novas mensagens normativas. Assim, ela deve ser neutralizada pela autoridade que, a todo custo, tentará se imunizar contra ela, ao desconfirmar a reação desconfirmadora, transformando-a em uma simples rejeição, que pode ser enquadrada como comportamento ilícito, que pode ser por ela controlado. (OLIVEIRA, 2006, p. 120 a 122).
As reações desconfirmadoras surgem no momento em que a legitimidade da relação de poder está enfraquecida. A legitimidade está ligada, justamente, à imposição de certas significações e ao desconhecimento, por parte dos endereçados sociais, das relações de força entre grupos que compõem a sociedade, que constituem a chamada violência simbólica. O poder será considerado legítimo enquanto o seu exercício de violência simbólica for dissimulado e desconhecido pelos endereçados sociais, de modo que ele possa influenciar comportamentos através de sua liderança, reputação e autoridade, que devem se combinar de forma congruente. Uma vez que o arbítrio social, em torno das relações de força, torna-se evidente, a legitimidade fica comprometida. Nas palavras do autor “esta seleção básica é arbitrária, porque a sua função e estrutura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, mas dependem da complexidade social e não da natureza das coisas ou da natureza humana”. (FERRAZ Jr., 2002, p. 56).
A influência por autoridade é necessária para a constituição do esquematismo jurídico/antijurídico, se impõe de modo contrafático e se generaliza apesar da passagem do tempo. Embora haja desilusão da expectativa, o sujeito ainda a mantém, possibilitando a jurisfação do poder. Ela sempre dissimula as relações de força, que estão em sua base, agregando sua própria força simbólica às mesmas relações, através de normas que passam a regular o uso da força. Neste sentido, vimos que a autoridade meta-complementar só reconhece a confirmação e a rejeição de suas mensagens. Já a influência por reputação atua mais diretamente no relato das normas, pois neutraliza os conteúdos normativos e possibilita sua assimilação acrítica pelos sujeitos, em termos de valores ideológicos. Por fim, a influência através da liderança neutraliza as diferenças entre a autoridade e os sujeitos, manipulando a escassez de consenso e institucionalizando a relação meta-complementar normativa. Aqui ganham relevo todos os procedimentos institucionais legislativos, executivos e judiciais, bem como mecanismos midiáticos de propaganda. Na prática, estas três generalizações devem se combinar a fim de se fortalecerem, mutuamente, mas, em situações disfuncionais, elas perdem o seu caráter dissimulador.
A legitimidade do poder pode ser enfraquecida em situações comunicativas normativas defeituosas onde ocorrem abusos na comunicação por parte do editor normativo, em que ele elimina a própria possibilidade de seleção do sujeito, ou seja, nas situações em que ele coage pelo sujeito, de certa forma o eliminando enquanto tal. Neste caso, a percepção da injustiça e a possível revogação da autoridade podem ocorrer. Abre-se espaço para o emergir de reações desconfirmadoras. Um exemplo de comunicação abusiva ocorre quando a própria autoridade usa a violência de forma desconfirmadora e generalizada, e não como uma alternativa a evitar, ou seja, como parte integrante do controle da seletividade dos agentes sociais. É o que veremos a seguir na análise da peça Macbeth.

  1. O USO ABUSIVO DA VIOLÊNCIA EM MACBETH E A DESTRUIÇÃO DA LEGITIMIDADE PRAGMÁTICA

Para desenvolver o nosso estudo, nos pautamos pela análise detalhada do texto da peça e também pela leitura fílmica feita por Orson Welles em 1948, que dirige e atua no papel do protagonista, com excepcional brilhantismo para expor a complexidade moral de Macbeth, calcada na ambivalência trágica entre ambição pelo poder de se tornar rei e a consciência da prática do mal moral e dos crimes assumidos em nome deste desejo. Nesta grande tragédia mística, entre 1605 e 1607, temos uma complexa composição de elementos interativos que possibilitam a leitura pragmática-jurídica do poder, bem como uma rica discussão sobre o mal interior que impulsiona as práticas criminosas externas. Nas palavras de Bárbara Heliodora, acompanhamos a terrível trajetória de um home cheio de qualidades, bom súdito e melhor general, que a certa altura é dominado pela ambição. (HELIODORA, 1978, p.669).
A peça se inicia no meio da charneca escura, como uma espécie de prólogo do ambiente maligno que será dominante no cenário da tragédia. Três bruxas irmãs anunciam a chegada de Macbeth, um bravo general do exército do Rei da Escócia governada, com legitimidade pragmática fortalecida, pelo rei Duncan. A escuridão indica, em termos simbólicos, a presença sombria do mal que se comunica com Macbeth e com seu também valoroso colega de exército Banquo. As falas lacônicas e extremamente vagas das bruxas apresentam-se como um tipo de profecia do futuro. (SHAKESPEARE, 2006, p.719).

Primeira Bruxa
Salve Macbeth; oh salve, Barão de Glamis!
Segunda Bruxa
Salve Macbeth, oh salve Barão de Cawdor!
Terceira Bruxa
Salve Macbeth; que um dia há de ser rei!

Banquo fica surpreso com a aparente fortuna de Macbeth, indaga sobre o seu futuro e recebe outras três previsões lacônicas e abertas a ele dirigidas.

Primeira Bruxa
Menor, porem maior, do que Macbeth!
Segunda Bruxa
Menos feliz, no entanto, mais feliz!
Terceira Bruxa
Não será rei, mas pai de reis!
Salve, então, Macbeth e Banquo!

Macbeth demonstra ter sido bem afetado pelas falas, mas, incialmente, as vê com descrédito pois não cogita a possibilidade de obter esta promoção já que o barão de Cawdor vive com prosperidade. No entanto, de forma inesperada, como a chagada do nobre Rosse, recebe a informação de que o Barão de Cawdor cometeu um crime de traição e foi condenado a morte. Rosse anuncia que o título deve pertencer a Macbeth, anteriormente nomeado Barão de Glamis. (SHAKESPEARE, 2006, p.718).
É neste exato momento que as lacônicas e vagas palavras das bruxas capturam a mente e despertam, de forma impactante, a ambição pelo poder de ser rei em Macbeth. De fato, é esta ambição que influencia a interpretação tão literal e, de certo modo, simplista das profecias. Ele foi promovido a Barão de Cawdor sem que precisasse agir. E para ser rei, deverá agir? A escrita da carta dirigida a Lady Macbeth, aparentemente apenas informativa, será o ponto de partida de suas ações pragmáticas que evidenciarão o quanto a seletividade das ações de nosso protagonista será controlada pela fala das bruxas. Diz a carta:

Encontraram-me no dia do triunfo e soube, pelas mais seguras fontes, que tem conhecimento acima dos mortais. Quando queimava de desejo de interrogá-las mais um pouco, transformaram-se em ar, no qual desvaneceram. Enquanto fiquei transido de espanto, chegaram missivas do rei que me saudaram como Barão de Cawdor, por cujo título essas estranhas irmãs me haviam chamado, referindo-se a um tempo ainda por vir com “Salve quem vai ser rei!” Tudo isso julguei por bem comunicar a ti, minha adorada parceira de grandeza, para que não percas os dividendos de regozijo, ficando na ignorância da grandeza que lhe é prometida. Guarda-o no coração e que tudo vá bem. (SHAKESPEARE, 2006, p.717-718)

     Lady Macbeth, também envolta pela forte ambição do poder, tem suas ações ainda mais controladas pela carta do marido, pois decide ir além da espera passiva da realização da profecia, já que sua realização dependeria da morte natural de Duncan. Decide tomar o que chama de atalho, assumindo, para nós espectadores, um plano de persuadir o marido, em um claro exercício de poder linguístico, a tirar a vida do rei. Eles formam um casal muito amoroso e ardente do ponto de vista sexual. Embora compartilhem a ambição,  Macbeth é visto como bondoso demais por ela (SHAKESPEARE, 2006, p.718).

Lady Macbeth
Já é Glamis e Cawdor, e serás
O resto, mas temo-te a natureza:
Sobra-lhe o leite da bondade humana
Para tomar o atalho. Sonhas alto,
Não lhe falta ambição, porem privada.
Do mal que há nela, tens os mais altos sonhos
Tem de ser puros, teme o ser falso,
Mas não o falso lucro. Tu precisas
Quem diga: ‘Glamis, faz se é o que queres;
Se não fazes mais por medo
Do que por desejar não ser feito.”
Vem para que eu jorre brio em seus ouvidos
E destrua com a bravura desta língua
O que te afasta do anel de ouro
Com que o destino e a forma metafísica
Te querem coroar.

Sabendo que Macbeth está chegando e que o rei também passará uma noite no castelo, ela busca persuadir a si própria a se unir a energias do mal, na mórbida fala. Ela busca encontrar uma espécie de mal absoluto dentro de si para realizar a suas ambições de poder. (SHAKESPEARE, 2006,719).

Lady Macbeth
É rouco o próprio corvo
Que anuncia a fatídica chegada
Do rei a minha casa. Vinde espíritos
Das ideias mortais; tirai-me o sexo:
Inundai-me, dos pés até a coroa,
De vil crueldade. Dai-me o sangue grosso
Que impede e corta o remorso;
Não me visitem culpas naturais
Para abalar meu sórdido propósito,
Ou me fazer pensar nas consequências;
Tornai, neste meu seio de mulher,
Meu leite em fel, espíritos mortíferos
Vossa substância cega, onde entrar,
Espreita e serve o mal.

     Macbeth chega e chama sua esposa de meu amor. Ela ressalta a felicidade da carta enviada e, também, em grande contraponto emotivo, o seu plano mortal de tirar a vida do rei, naquela mesma noite. Usando recursos discursivos ligados a um exercício de violência simbólica, ela dissimula, perante outros, o plano mortal de desconfirmação de sua autoridade, simulando uma falsa confirmação leal de sua autoridade. Lady Macbeth destaca a necessidade de o marido desenvolver a mesma dissimulação discursiva ((SHAKESPEARE, 2006, p. 719).

Lady Macbeth
Mas jamais verá o sol amanhã.
Teu rosto, Thane, é um livro onde os homens
Podem ler suspeições; para enganá-los
Use aspecto enganoso, e boas-vindas
Brilhem-te nos olhos, mãos e língua.
Se a inocente flor que nutre a víbora.

Macbeth é ambicioso, mas seu senso moral é ambivalente e complexo. Hesita em praticar o ato mortal, ressaltando que a legitimidade meta-complementar do rei era calcada na sua bondade generosa, que caracterizava autoridade, liderança e reputação. Sua esposa insiste em assumir a confirmação moral da necessidade do assassinato e da crueldade total. O marido argumenta, confirmando a sua condição de súdito e hospedeiro, que deveria proteger seu governante. Ressalta que acabou de ser honrado com a promoção e pensa na possibilidade de o plano falhar. Observamos sua dificuldade em assumir a ação desconfirmadora tão bem construída na perspectiva da esposa, que chega a comparar o suposto enfraquecimento de sua ambição e de sua coragem com a sua masculinidade. (SHAKESPEARE, 2006, p. 722 a p.724).

Macbeth
Ele está aqui por dupla confiança e sob o meu cuidado
Primeiro, sou seu súdito e parente
Duas razões contra o ato. Como hospedeiro,
Devia interditar o assassino.
E não tomar eu mesmo do punhal.
Duncan, além do mais, tem ostentado
Seu poder com humildade e vivido
Tão puro no alto posto, que seus dotes
Soarão, qual trombeta angelical,
Contra o pecado que o destruirá.
Macbeth
Não vou levar avante este negócio.
Ele acabou de me honrar: e eu o conquistei
O ouro do respeito desta gente;
Devo agora ostentá-lo em seu brilho.
E não descartá-lo assim.
Lady Macbeth
Estava bêbada a ambição que vestias? E Dormiu?
E acorda para olhar pálida e verde
Pro que, livre, pensará? Doravante
Julgo assim o teu amor. Tens tanto medo
De seres, com teus atos e coragem, igual aos teus desejos?
Tu tremes. Eu já amamentei,
E sei o quanto é doce o sugar do neném;
Mas poderia, enquanto me sorria,
Roubar-lhe o seio da gengiva mole
E arrebentar-lhe o cérebro, se houvesse
Jurado que o faria.

O discurso persuasivo de Lady Macbeth, que manipula a afirmação de seu amor e de sua sexualidade masculina, consegue controlar a seletividade das ações do marido. Mesmo antevendo alguma possiblidade de falha, ele é persuadido e adere a conspiração mortal. A ambição despertada pela profecia das bruxas dá a esposa uma certeza absoluta de sucesso ingênuo, que não leva em conta as incertezas da linguagem. Apesar do ato ter um sentido pragmático de desobediência subversiva desconfirmadora da autoridade de real de Duncan, a autoria deve ser dissimulada e reconstruída para incriminar terceiros. Lady Macbeth planeja uma ressignificação discursiva da cena de morte para que adquira um sentido de rejeição criminosa praticada pelos próprios camareiros do rei. De forma inteligente, mais uma vez, Shakespeare observa a diferença que pode haver entre o fato em si ocorrido e aquilo que juridicamente é reconstruído em termos oficiais. Também indica a distinção entre a desobediência criminosa (rejeição pragmática) e desobediência subversiva (desconfirmação pragmática). (SHAKESPEARE, 2006, p. 723 e 724).

Lady Macbeth
Que monstro, então levou-te a sugerir-me tal empresa?
Quando ousaste é que foste homem
Macbeth
E se falharmos?
Lady Macbeth
Falharmos? Com a coragem retesada
Nos falharemos. Quando o rei dormir
Ao que dura a viagem neste dia
Há de chamá-lo seus dois camareiros
Hei de embalar com tanta e tal bebida
Que a guardiã do cérebro a memória,
Fará com seus vapores, da razão
Mero alambique charfundando em sono,
Tão encharcados que pareçam mortos
O que não podemos perpetrar
Com um Duncan desguardado? Ou imputar
A tais esponjas, que arcarão com a culpa
Do nosso crime?
Macbeth
Estou pronto, e cada nervo,
Será um tenso agente desse horror.
Vamos; mostrando o ar sereno e são,
O rosto esconde o falso coração

Quando Macbeth retorna dos aposentos do rei, traz em suas mãos dois punhais ensanguentados, afirmando que é uma triste visão. Sua reação é a de assumir, do ponto de vista moral e jurídico, a rejeição criminosa se seus atos, ele não consegue, nos termos apresentados por sua esposa, considerar seu ato uma desobediência subversiva desconfirmadora. Sua ambição de ser rei passa a conviver com a aceitação do sentido criminoso de seus atos, do ponto de vista moral e jurídico. Esta cena parece antecipar todo o tormento moral que o acompanhará posteriormente. Uma voz misteriosa que parece ser de sua consciência alerta que ele não mais dormirá. Lady Macbeth, ainda tomada pela assertividade da certeza do sucesso da conspiração, destaca que ele precisa se livrar das provas dos punhais e das mãos sangrentas, mas seu marido diz não conseguir olhar para o que fez. A esposa não parece demostrar sinal algum de culpa e toma a iniciativa de devolver os punhais e reconstruir a cena do crime, apontando os guardas como sendo os autores do ato violento. (SHAKESPEARE, 2006, p. 730).

Lady Macbeth
Assim doentes? Pega um pouco d´água
E lava as provas destas mãos sangrentas.
Por que trouxeste de lá os punhais?
Precisam ficar lá. Volta e besunta
Com o sangue dos dois que dormem.
Macbeth
Nunca mais.
Eu temo quando penso no que foz;
Não posso mais olhá-lo.
Lady Macbeth
Que fraqueza!
Dá-me os punhais. Os que dormem e os mortos
São só quadros. Só que é criança
Vê o que temer em diabo pintado.
Se ele sangrar, pintarei os dois guardas
Pra mostrar a sua culpa

Macduff e Lenox batem à porta, logo cedo pela manhã, informando que o rei pediu para ser acordado cedo. Macbeth e sua esposa vestem trajes de dormir para dissimular a longa noite em que permaneceram acordados. Macduff acha o corpo do rei, dá, aos berros, um alerta público dramático de traição. Macbeth mata os guardas, já afirmando que o tormentoso exercício da violência física vai ser reproduzido sem limites. Parece ter sido bem persuadido por sua esposa, além do que ela mesma esperava. Justifica seu ato através de um exercício de violência simbólica, reafirmado que, por amor ao rei, não conseguiu se conter, ao ver os guardas sujos de sangue e com os punhais sujos, ainda em suas camas. (SHAKESPEARE, 2006, p.736).
Os filhos do rei, Malcolm e Donalbain, herdeiros diretos do rei, fogem para a Inglaterra e Irlanda, temendo por sua vida. Macduff suspeita, de forma equivocada, de que os guardas forma pagos por eles, por ambição. Decidem que o soberano deve ser Macbeth, que, já na condição de rei, endossa, como exercício da violência simbólica, a conveniente tese do parricídio. (SHAKESPEARE, 2006, p.742).
Na posição de rei, ele transparece ainda mais o seu tormento moral diante do ato praticado contra Duncan, ao mesmo tempo em que sua ambição pelo poder aumenta. Seu lado irracional homo demens, no sentido pensado por Edgar Morin, transparece. Ainda que exiba uma consciência embriagada pela culpa, de forma ambivalente, parece assumir a violência física como estratégia de poder total. Tenta dissimular a autoria, mas comete novos atos de rejeição criminosa violenta dissimulada. Macbeth teme a nobre natureza da Banquo, receia ser morto por ele ao recordar da profecia de que seus filhos seriam reis e decide encomendar a sua morte e do seu filho Fleance, que consegue escapar da morte. Ele assume, finalmente, o polo ativo nesta relação de poder/violência.
No primeiro banquete real, ela chama a atenção de Lady Macbeth, ainda dominada pela racionalidade aparente, pelo seu estado de embriaguez não só físico, mas também moral, que ressalta todo o seu desconforto e sua culpa ainda presentes diante da assunção desta posição ativa no comando dos atos de violência. Na festa, Macbeth vê o fantasma de Banquo e de Duncan, entra em desespero e encerra a cerimônia. Macduff não foi a festa, o novo rei é informado que ele foi a Inglaterra encontrar os filhos de Duncan. (SHAKESPEARE, 2006, p. 743).
Macbeth não consegue institucionalizar a sua autoridade meta-complementar, principalmente, em termos de liderança e reputação, sente-se fraco como autoridade. Teme que que terceiros desconfirmem a sua autoridade porque a consideram injusta. Vai ao encontro das bruxas, mais uma vez, para aplacar seu desespero e a sua angústia. Elas profetizam três máximas, que, em uma leitura superficial, acalmam o rei. Indicariam a perda de poder de Macbeth a realização de ações impossíveis de acordo com as leis naturais. (SHAKESPEARE, 2006, p. 764 e p. 765).

Primeira aparição
Macbeth! Cuidado com Macduff!
Segunda aparição
Sê ousado, sangrento e resoluto;
Ri dos homens, pois ninguém parido
Por uma mulher fere Macbeth
Terceira aparição
Macbeth jamais será vencido enquanto
A floresta de Birnam não se elevar contra ele em Dunsinane.

Novas frases lacônicas são pronunciadas e Macbeth não consegue perceber, mais uma vez, o fenômeno interpretativo da linguagem profética. Deixando que um suposto sentido literal, ajustado as suas ambições, controle as suas ações, sente- se fortalecido, pois as profecias indicam uma impossibilidade real dele sofrer uma deposição, pois ela só ocorreria diante de situações impossíveis de acontecer pelas leis naturais. Decide tomar o castelo de Fife, matando os filhos e esposa de Macduff, que confirmavam a sua autoridade real. É neste momento que o exercício de sua violência física e não simbólica se torna explícito e abusivo, destruindo sua autoridade, sua liderança e sua reputação, abrindo as portas para a reação subversiva. Quando Macduff é informado das trágicas mortes, decide liderar, com a ajuda de mil soldados ingleses, um ato de desconfirmação mortal das desconfirmações abusivas praticadas por Macbeth, qualificando suas ações como sendo rejeições criminosas e seu governo como tirânico.
Depois das mortes abusivas do castelo de Fife, tomamos ciência de que a própria Lady Macbeth alcança um estado de culpa e de tormento moral, ainda mais radical do que a de seu esposo, quando percebe a presença da violência física sem limites no governo. Ela não consegue limpar o sangue de suas mãos, em uma interessante menção simbólica. Acaba cometendo o suicídio. Faz menção as mortes do Barão de Fife. (SHAKESPEARE, 2006, p.784).
Dez mil soldados ingleses se aproximam disfarçados com galhos de floresta de Birnam, que parece caminhar para o castelo de Macbeth. Por derradeiro, cara a com Macduff toma ciência de que ele não teve um nascimento espontâneo, pois foi arrancado de sua mãe fora do tempo. Macbeth finalmente percebe o caráter metafórico e não literal das segundas profecias, que não se referiam a um ato da natureza, mas a ações humanas articuladas, que transformam aquilo que é tido como natural. Ele assume a consciência de que as bruxas manipularam as ações dele e de sua esposa, em termos destrutivos. A manipulação levou em conta a presença de aspectos malignos do casal. Mas ele decide lutar pelo poder até o fim, até que Macduff consegue desconfirmar a sua autoridade em termos mortais, exibindo a sua cabeça e destruindo a sua frágil autoridade meta-complementar, caracterizando a sua posição como sendo a de usurpador criminoso. Neste momento, Malcolm, herdeiro legítimo de Duncan, assume a posição legal de rei (SHAKESPEARE, 2006, p. 797 e 798).

Macbeth
Maldita língua que me conta isso,
Pois me acuou e me fez menos homem.
Não creia mais ninguém e falsas bruxas
Que nos enganam com duplos sentidos
Cada palavra é dada ao nosso ouvido,
Mas traída se agimos com esperança
Não combato contigo
Macduff
Então covarde
Entrega-te para seres exposto ao tempo:
Pois tu, igual aos monstros que são raros,
Serás pintado do alto de uma lança
Escrito embaixo: “Tirano”
Macbeth
Não me entrego!
Não beijarei o chão dos pés de Malcolm,
Não ouvirei insultos da ralé
Mesmo com Birnam vindo a Dunsinane,
E tu meu inimigo não parido,
Comando até o fim. Vem cá, Macduff.

CONCLUSÕES

A leitura interdisciplinar da peça Macbeth evidencia a presença de uma visão interativa da relação de mando obediência projetada em ambiente histórico onde se pressupunha, no plano formal, uma concepção unilateral do poder. Também observamos como a temática do poder relacionado aos discursos será a base desta tragédia, já presente na primeira profecia das bruxas. A fala mágica desperta a ambição de Macbeth em ser rei e favorece a interpretação literal, desconectada de um todo linguístico mais abrangente e ingênua de Macbeth e de sua esposa. Lady Macbeth é fortemente persuadida pelas palavras das bruxas, de forma indireta, narradas por seu marido, passando a procurar dentro dela o mal absoluto, como condição moral para a prática do assassinato de Duncan e estende esta persuasão ao seu marido. Somente no final da peça, veremos que este mal moral absoluto não consegue persistir no espírito de Lady Macbeth, já que as lavagens simbólicas das mãos e o suicídio caracterizam o seu tormento em ver a cadeia de atos sangrentos que a sua ambição gerou.
Macbeth não consegue encontrar o mal total dentro de si, mas, mesmo assim, tem a seletividade de suas ações controladas pela esposa. No entanto, sua ambivalência moral cresce até que a prática do ato mortal se confirma e que a reconstrução da autoria é estendida, de forma abusiva, aos camareiros e aos filhos do rei. Ele tem a consciência de que Duncan tem o seu bondoso governo confirmado em termos interativos e de que ele mesmo foi favorecido com uma promoção a posição de Barão de Cawdor, recentemente. Há uma complexa, cinzenta e ambígua consciência moral em Macbeth que o impede de assumir o ato mortal praticado como um genuíno ato de desconfirmação subversiva da autoridade legal. Mas, depois da morte de Duncan e de sua coroação, seu tormento moral não desaparece, mas, ao mesmo tempo, motivado por sua ambição, ele não consegue mais conceber a perda da condição de rei e passa a sentir ameaçado. Nosso protagonista parece não reconhecer a sua própria legitimidade pragmática.
Nesta complexa trama de emoções irracionais, que passam a ser dominantes na mente de Macbeth, o uso da violência física, no lugar da chamada violência simbólica, irá se mostrar abusiva e desconfirmadora da própria condição de sua realeza. A morte da família de Macduff, obediente a autoridade de Macbeth, impulsiona a ação coletiva desconfirmadora de Macduff, que transforma os atos de Macbeth em rejeição criminosa, confirmando a nova autoridade real de Malcolm. A morte de Duncan passa a ter um sentido de uma rejeição ilícita e a ação de Macbeth como usurpação criminosa. Pela segunda vez, uma leitura interpretativa ingênua das profecias, e a não percepção do seu caráter metafórico, irão levar nosso protagonista ao encontro trágico com a morte, vista como um modelo de justiça vertical informal, que retribui o mal com a prática do mal. Por certo, observamos a trágica percepção de que a violência física por si só é incapaz de legitimar o poder político-jurídico. Shakespeare usa o misticismo como recurso narrativo, mas a sua leitura política é humana, por excelência. O misticismo das profecias aponta para uma visão unilateral de poder, mas o seu papel é apenas o de despertar a ambição e instigar as ações pragmáticas de nosso protagonista, que fracassam no plano da realidade interativa. Macbeth, e não as bruxas, seria o responsável por sua ruína humana, moral e política.

REFERÊNCIAS

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