Dalva Aparecida Garcia
POR QUE ESCREVER?
Para iniciarmos o texto de uma comunicação é necessário crer que algo merece ser comunicado. Talvez o que possa sustentar essa tarefa ingrata seja a crença de que estamos diante de uma bela hipótese que merece ser investigada, irradiando algumas luzes para aqueles que mergulham na escuridão solitária de uma situação problemática. Ou ainda a pretensão de termos encontrado a chave da interpretação de um conceito encarcerado nas tramas complexas de um texto ou de uma obra.
Ora, a dedicação a esse trabalho de caçar aqui e acolá sinais que nos indiquem pistas a seguir pressupõe que por trás do emaranhado de letras há verdades a serem redescobertas, enigmas que possam ser decifrados, tesouros encarcerados que só podem ser descobertos pelas mãos daqueles habituados a usar os instrumentos adequados, sejam estes topográfos , cartógrafos, antropólogos, arqueólogos…
Todavia, circunstrita tal tarefa às especialidades e especialistas, vez ou outra nos esquecemos que a busca do tesouro é a busca do mistério, mistério pulsante que animava nossa imaginação infantil como caçadores de tesouros, fosse tal tesouro uma fita desfeita embaixo de um tronco de árvore, um besouro escondido entre folhas ou um botão velho caído de uma roupa puída. Em suma, no avesso da memória nos esquecemos que a verdade do tesouro não era o ouro enterrado pelo pirata, nem mesmo a riqueza naufragada do corsário, era tão somente aquilo que era divertido procurar só porque era preciso achar o que quer que fosse capaz de alimentar nossa brincadeira.
Trocamos o botão velho desbotado que pintávamos com cores fortes pela tarefa intelectual de esboçar conceitos que apontem soluções ou interpretações mais ou menos seguras para os problemas que criamos. Substituímos a certeza de que havia ouro e diamantes a nossa espreita pela crença que à luz das letras dos grandes gênios do pensamento seria possível encontrar a verdade, mesmo que desbotada, porque mediante os instrumentos da história da filosofia ou da análise estrutural do texto seria possível restituir as cores da originilidade e da genialidade daqueles que, por um motivo ou outro, se aproximaram do que poderia ser denominado verdade ou validade argumentativa.
Creio que não por acaso o trabalho intelectual se tornou enfadonho, o escrever muito rapidamente se transmuta em cifra de produção especializada e administrada por Instituições reconhecidas, há caminhos corretos a serem perseguidos, regras inquestionáveis a serem obedecidas, prazos e procedimentos que legitimam o ato de escrever e culminam no reconhecimento de quem escreve. Talvez em busca de tal reconhecimento alimentemos a crença de que há sempre algo de importante a comunicar, nas entrelinhas do texto buscamos nuances de cores múltiplas para quem sabe, em uma esperança quixotesca, vislumbrarmos a cor vívida de uma verdade, ou ainda de algumas verdades, que somente alguns podem encontrar mediante árduo trabalho.
É justamente imbuída de uma persistente preguiça de produção intelectual que guardo a esperança, não menos quixotesca, que a presente escrita renuncie à pretensão de ser comunicante ou alvo de um diálogo investigativo entre especialistas da filosofia da educação. Admitir aqui prosseguir, mesmo que preguiçosamente, é deixar-me levar pela brincadeira de escrever, sem um alvo preciso que possa ser rigorosamente considerado trabalho ou produção intelectual, sem o compromisso com algo que possa desvelar ou clarificar uma problemática. Por isso tomo emprestadas as letras de Marcel Proust para iniciar minha marcha descompassada, apenas porque há letras que não se reduzem ao tempo da produção, se desbobram no tempo da memória e da imaginação, da rememoração; estendem e estreitam a continuidade da história, se fazem presentes apesar do passado, indicando que, para além da busca da genialidade literária ou da verdade filosófica, para além da necessidade de produção ou publicação, é prazeroso ler… E por que não, escrever?
“Eu havia prometido a Albertine que, se não saísse com ela, haveria de entregar-me ao trabalho. Mas, no dia seguinte, como se aproveitando de nosso sono a casa tivesse miraculosamentre viajado, despertei num tempo diferente, sob diverso clima. Não se trabalha no momento de desembarcar num novo país, a cujas condições é preciso readaptar-se. Ora, todo dia para mim era um país diferente. Minha própria preguiça, sob as formas novas de que se revestia, como a teria eu reconhecido? Logo, dir-se-á que, em dias de mau tempo irremediável, somente a residência na casa, situada no meio de uma chuva igual e contínua, tinha a deslizante doçura, o silêncio calmante, o interesse de uma navegação; noutra ocasião, em dia claro, ficando imóvel na cama, era deixar rodar as sombras em torno a mim como à volta de um tronco de árvore. De outras vezes, ainda, aos primeiros toques dos sinos de um convento próximo, raros como as devotas matinais, mal embranquecendo o céu sombrio com sua saraiva incerta que o vento morno fundia e dispersava, eu discernira um desses dias tempestuosos, desordenados e agradáveis em que os telhados, batidos por pancadas intermitentes que uma brisa ou um raio de sol logo secam, deixam deslizar, aos arrulhos, uma gota de chuva e, enquanto o vento não começa a rodopiar, alisam o sol momentâneo, que as irisa, suas ardósias furta-cor, um desses dias cheios de tantas mudanças de tempo, de incidentes, de tempestades, que o preguiçoso não o dá por perdidos, pois se interessou pela atividade que a atmosfera tem desenvolvido em vez dele, agindo de certa forma em seu lugar; dias semelhantes a esses tempos de rebelião ou de guerra que não parecem vazios ao estudante que não vai à escola, porque, nos arredores do Palácio da Justiça ou lendo jornais, tem a ilusão de achar, nos acontecimentos ocorridos, à falta da tarefa que não pode cumprir, um proveito para sua inteligência e uma desculpa para sua ociosidade; enfim, dias aos quais se podem comparar aqueles em que ocorrem, na nossa vida, uma crise excepcional e da qual o que nunca fez nada pensa que vai extrair, se tudo termina bem, hábitos de trabalho: por exemplo, a manhã em que ele sai para um duelo que vai se dar em condições especialmente perigosas; então lhe aparece de súbito, no moemto em que talvez lhe vá ser tirada, o preço de uma existência de que poderia ter aproveitado para iniciar uma obra ou sinplesmente desfrutar prazeses, e da qual não soube gozar nada. ‘Se pudesse escapar com vida”, pensa ele, ‘como começaria logo a trabalhar e também como haveria de me divertir!”. De fato, a vida assumiu de repente, aseus olhos, um valor bem maior, pois ele põe nela tudo o que lhe parece que ela pode oferecer, e não o pouco que ele lhe faz dar habitualmente. Vê-a segundo seu desejo, não como sua experiência lhe ensinou que ele sabia torná-la, isto é, tão medíocre. Num instante, sua vida se encheu de labores, de viagens, de excursões a montanhas, de todas as belas coisas que ele imagina poderão ficar impossíveis com o desfecho funesto desse duelo, sem pensar que já o eram antes que se tratasse do duelo, devido aos maus hábitos que, mesmo sem duelo, teriam permanecido. Ele volta para casa sem sequer ter sofrido um ferimento. Mas encontra os mesmos obstáculos aos prazeres, às excursões, às viagens, a tudo de que há pouco receara por um momento ficar despojado para sempre pela morte; basta para isso a vida. Quanto ao trabalho – tendo circinstâncias excepcionais por efeito exaltar o que de antemão existia no homem, no trabalhador o trabalho e no preguiçoso a preguiça –, resolve tirar férias.
Eu fazia como ele e como sempre fizera desde que tomara a resolução de me por a escrever, assumida outrora, mas que parecia datar de ontem, porque havia considerado cada dis, um após outro, como não tendo chegado…” (PROUST, Marcel. A prisioneira. In Em busca do Tempo Perdido, Vol III, pp. 64-65)
POR QUE LER?
A leitura filosófica
Afirma Dostoiévski em suas Memórias do Subsolo:
“Ah, senhores, é possível que me considere um homem inteleigente apenas porque, em toda vida, não pude começar ou acabar alguma coisa. Admitamos que eu seja um tagarela, um tagarela inofensivo, magoado como todos nós. Mas o que fazer, se a destinação única e direta de todo homem inteligente é apenas a tagarelice, uma intencional transferência do oco para o vazio” (DOSTOIÉVSKI, Fiódor, 2000, p.31)
Ao iniciarmos um texto com tagarelices, nos abstemos do adjetivo da inteligência, ou melhor, o guardamos para aqueles que possam entendê-la como método. É no método de clarificação ou até de criação de conceitos que julgamos ser primordial a leitura dos denominados textos clássicos ou filósoficos para o ensino de filosofia. É evidente que, alimentados “por motivos mais fortes do que a penosa lembrança da falta de cultivo, de cultura, que, historicamente, mal conhece o homme de lettres”, (Adorno, Theodor, 2003, p.16) nos perdemos no truque de transformar iletrados em leitores e conhecedores dos denominados problemas, conceitos ou textos filosóficos. Na magia encantadora do palco educacional, lenços, mangas de camisa e chapéus rapidamente se transmutam em manuais, formas de sensibilização, métodos de problematização. Em suma, a magnificiência do espetáculo clama pelo resultado. A equação, seja qual for, busca conceitos rígidos e ponderados, “segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como o cão de guarda contra o espírito” (Adorno, 2003, p. 17).
Em o Ensaio como Forma , Adorno não somente nos presenteia com uma belíssima e provocadora defesa do ensaio como gênero filosófico, como também denuncia algumas atrocidades da forma do fazer filosófico que poderiam se constituir em um convite para uma intencional transferência de nossa identificação subjetiva como vítimas de um processo político-educacional para o papel de cúmplices de tais atrocidades. Transferência do oco para o vazio, como afirma o romancista russo, transferência que aqui sustenta algumas tagarelices, com o risco intencional ou até preguiçoso de não fundamentá-las.
Por que estaria o ensaio difamado como produto bastardo de uma cultura sem tradição suficiente? Em busca da resposta a essa pergunta, Adorno retoma Lukács para afirmar o quanto tal forma já havia sido repreendida o suficiente: “A forma do ensaio ainda não conseguiu deixar para trás o caminho que sua irmã, a literatura, já percorreu há muito tempo, desenvolvendo-se a partir de uma primitiva e indiferenciada unidade com a ciência, a moral e a arte”1 . Parentescos à parte, afirma Adorno que qualquer elogio a alguém como escritor já constitui elemento suficiente para excluir do meio acadêmico aquele que está sendo elogiado, uma vez que “a corporação acadêmica só tolera como filosofia o que se veste com a dignidade do universal, do permanente, e hoje em dia, se possível, com a dignidade do originário; só se preocupa com uma obra particular na medida em esta possa ser utilizada para exemplificar categorias universais, ou pelo menos tornar o particular transparente em relação a elas.” (Adorno, 2003, p.16)
No contexto dos corporativismos acadêmicos, o gênero “ensaio” merece para Adorno uma análise mais profunda, pois no ensaio estaria a marca da insubordinação de uma forma que não admitiria que seu âmbito de competência lhe fosse prescrito. Análise que não retomaremos neste escrito, não apenas porque queremos nos furtar da problemática de como fazer filosofia para além das dicotomias entre o fazer científico e artístico mas, principalmente, porque imediatamente o que nos interessa no texto de Adorno são algumas provocações acerca do método de leitura e da interpretação dos assim chamados textos filósoficos. Tais provocações pretendem abrir espaço para inaugurarmos um passeio pelos caminhos da memória proustiana sobre a leitura, caminhos estes da rememoração, que talvez possam suprimir a distância entre a objetividade e a subjetividade, entre o leitor e a obra, entre o passado e o presente.
Ainda na defesa do ensaio Adorno afirma que felicidade e jogo lhe são essenciais, pois seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, muito menos convergem para um fim último. “Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim” (Adorno, 2003, p.17). Afirma o defensor da Teoria Crítica que, justamente por medo de qualquer negatividade, os que se colocam contra o ensaio rotulam “como perda de tempo o esforço do sujeito para penetrar a suposta objetividade que se esconde atrás da fachada” (Idem, ibdem). Sendo assim, continua Adorno, “a pletora de significados encapsulada em cada fenômeno espiritual exige, do seu receptor, para se desvelar, justamente aquela espontaneidade da fantasia subjetiva que é condenada em nome da disciplina objetiva.” (Adorno, 2003, p.18)
A disciplina objetiva supõe um processo de destrinchar a obra em busca do que o autor teria desejado dizer, atividade típica dos comentadores ou dos historiadores de filosofia, que para Adorno estaria de alguma forma fadada ao fracasso, uma vez que é quase impossível determinar o que alguém possa ter pensado ou sentido em dado momento. O resultado da equação que nos propomos como incentivadores da leitura dos clássicos da filosofia, quando imbuídos de tal finalidade disciplinar, seria o inverso: “Os impulsos dos autores se extinguem no conteúdo objetivo que capturam” (Adorno, 2003, p.17). Todavia, a acusação de Adorno vai de encontro com a objetividade disciplinadora da academia, que afirma: “quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um devaneio impotente e implica onde não há nada para explicar. Ser um homem com os pés no chão ou a cabeça nas nuvens, eis a alternativa” (Idem, ibdem). Ou como diria Dostoiévski, a alternativa inteligente seria algo entre o oco e o vazio.
Mas se podemos ler Dostoiévski, ou se ainda é possível o ensaio, é porque “em vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, os esforços do ensaio ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram.” (Adorno, 2003, p.16)
Por isso, ousamos afirmar que se a experiência do filosofar não mais se fizesse possível, ainda assim seria possível abrir o espaço para a experiência da leitura sem a vergonha de buscar um lugar para o leitor da filosofia, que seria tão somente o lugar da leitura, do jogo fantasmagórico entre o leitor e a obra.
Claro que essa posição não pretende transformar a produção filosófica em mero gênero literário, embora, ao contrário de alguns, não julgaríamos isso um demérito, mas talvez um mérito que pudesse libertar a filosofia do jugo cientificista, mas, por outro lado, correríamos o risco de encarcerar toda e qualquer produção filosófica no vasto campo da criação artistíca, para a qual, segundo Adorno, o sonho iluminista cuidou de resguardar uma certa reserva de irracionalidade.
Mas se é preciso considerar que a arte e a ciência tenham se separado na história, é também preciso não “hipostasiar seu antagonismo” (Adorno, 2003, p.22), uma vez que os setores responsáveis pelas distinções acabam tendo que reconhecer institucionalmente a renúncia à verdade totalizante: “Os ideais de pureza e asseio, compartilhados tanto pelos empreendores de uma filosofia veraz, aferida por valores eternos, quanto por uma ciência sólida, inteiramente organizada e sem lacunas, e também por uma arte intuitiva desprovida de conceitos, trazem as marcas de ordem repressiva. Passa-se a exigir do espírito um certificado de competência administrativa, para que ele não transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as fronteiras culturalmente demarcadas” (idem, p.22).
Todavia, apesar da demarcação de fronteiras ou da tentativa da “desterritorialização deleuziana”, a mais simples reflexão sobre a vida poderia indicar o quanto alguns conhecimentos não podem ser confundidos com impressões arbitrárias, mas mesmo assim não poderiam ser capturados pela ciência. Como exemplo dessa incapacidade de aprisionamento às fronteiras demarcadas, Adorno situa a obra de Proust.
Mesmo sob a pressão do espírito científico onipresente até mesmo no artista, Proust soube, segundo Adorno, realizar uma reordenação experimental que escorregaria pelas malhas do saber científico. Ao valorizar a experiência do antigo homem de letras invocando a mais alta forma do diletante, Proust nos mostra que “não passaria pela cabeça de ninguém dispensar como irrelevante, arbitrário e irracional o que um homem experiente tem a dizer, só porque são experiências de um indivíduo e porque não se deixam facilmente generalizar pela ciência” (idem, p. 23)
Afirma Adorno:
“A obra de Marcel Proust, tão permeada de elementos científicos quanto a de Bergson, é uma tentativa única de expressar conhecimentos necessários e conclusivos sobre os homens e as relações sociais, conhecimentos que não poderiam sem mais nem menos ser acolhidos pela ciência, embora sua pretensão à objetividade não seja dimnuída nem reduzida a uma vaga plausibilidade. O parâmetro da objetividade desses conhecimentos não é a verfificação de teses já comprovadas por sucessivos testes, mas a experiência humana individual, que se mantém coesa na esperança e na desilusão. Essa experiência confere relevo às observações proustianas, confirmando-as ou refutando-as através da rememoração” (Adorno, p.23)
É no tecido da rememoração que o texto Sobre a Leitura, publicado originalmente como prefácio que Proust escreveu, em 1905, para a tradução do livro Sésame et Lys, de John Ruskin, que navegamos por uma bela viagem ao universo da leitura, buscando retirá-la das entranhas das classificações e dos procedimentos corretos tão somente para acreditar que se é inutil escrever, se é difícil filosofar, ainda assim é prazeroso ler.
Tão somente ler
Proust inicia seu instigante elogio à leitura nos conduzindo às suas lembranças da infância: “Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado sem vivê-los, aqueles que passamos em companhia dos livros.” (Proust,2011, p.9). Talvez, também, porque Proust percebe como ninguém, que a experiência, a realidade ou o que denominamos verdade, na literatura reside na ficção. As memórias proustianas são tão inventadas quanto verdadeiras. Por isso afirma Walter Benjamin no texto A Imagem de Proust:
“Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida tal como ela foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu…O importante para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar o trabalho de Penélope do esquecimento? A memória involuntária, de Proust, não está mais próxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos de reminiscência? Não seria esse trabalho de rememoração espontânea em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penélope, mas que sua cópia? Pois aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite.” (Benjamim, 1985, p.37)
A tecido de Proust, segundo Benjamin, é o da textura do ato puro da recordação, não se encontra na pessoa do autor e muito menos na ação, por isso afirma Benjamin: “as intermitências da ação são o mero reverso do continuum da recordação, o padrão invertido da tapeçaria” (Benjamin, 1985, p. 38). No lado do avesso da tapeçaria estaria o emaranhado de fios indiscerníveis pelo processo de análise ou por um método de escrita. Entre o lembrar e o esquecer, entre a verdade e a imaginação, entre o eterno e o fugaz a proeza de Proust, segundo Benjamin, estaria na interpretação sintética que se faz pelas “portas imperceptíveis do sonho”, comum às crianças que não se cansam de transformar as coisas e o que estão dentro deles em uma terceira coisa. Por isso as relações que se fazem no tecido da rememoração nunca são idênticas em si; e quando semelhantes, não são semelhanças oriundas das fisionomias, das maneiras de falar, das obras, que percebemos em estado de vigília. Pelo contrário, são apenas reflexos imprecisos de uma semelhança muito mais profunda e impenetrável que reside no mundo dos sonhos.
“As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem estrutura no mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de roupas e é, ao mesmo tempo ‘bolsa’ e ‘conteúdo”. E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia – , assim também Proust não se cansava de esvaziar como um só gesto o manequim , o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem que saciava sua curiosidade ou sua nostalgia.” (Benjamin, 1985, p 39 – 40)
Não é à toa que, antes de comentar a conferência sobre a leitura que Ruskin proferira em um hotel em Manschester, em dezembro de 1864, para ajudar a criação de uma biblioteca, Proust nos conduz a uma viagem por suas leituras da infância. Sua longa narração nos faz retomar a estranha sensação de termos que abandonar um livro na hora das refeições, abandoná-lo mesmo que, por um instante, a presença daqueles que acompanhavámos em cada suspiro ou desventura, só poderia resultar em angústia. E que solidão depois da última página lida, diante da constatação de que o livro havia acabado. Não se veria jamais aquelas pessoas a quem demos atenção maior do que as pessoas que nos rodeavam, jamais saberíamos algo de suas vidas, seria preciso que o livro continuasse para que fosse possível não ter amado em vão seres que, amanhã, não seriam mais que um nome numa página esquecida. Talvez por isso afirme Benjamin: “A tagarelice incomensuravelmente ruidosa e vazia que ecoa nos romances de Proust é o rugido com que a sociedade se precipita no abismo da solidão” (Benjamin, 1985, p.46). Mas, por outro lado, é nessa solidão que nos vemos povoados por nomes tão enigmáticos para os leitores de Proust quanto os nomes da aristocracia o eram para o autor de Em busca do tempo perdido. Haveria, então, algo de comunicante entre leitor e a obra? Vejamos o que nos afirma o próprio Proust. Para se contrapor à tese defendida por Ruskin, na conferência proferida em 14 de dezembro de 1864 (publicada com outras que constituiram cursos dados em Manchester, sob o título Sésame et Lys) Proust a sintetiza por uma suposta citação de Descartes: “ A leitura de todos os bons livros é uma conversação com as pessoas mais honestas dos séculos passados e que foram seus autores” (Proust, 2011, p. 28). Em suma, a tese defendida por Ruskin é a de que na impossibilidade de escolhernos os amigos que queremos para uma conversação ou diálogo que possa irradiar a sabedoria, encontraríamos nos bons livros os amigos adequados para o índice da verdade que procuramos porque a leitura seria, exatamente, uma conversação com homens muito mais sábios e mais interessantes do que aqueles que podemos ter a chance de conhecer à nossa volta. Proust, em seu belíssimo texto, nos conduz a caminhos que, ( à maneira de Walter Benjamin) são muito mais desvios que caminhos – reforçam a tese que haveria algo de comunicante entre o autor e o leitor que não se faz propriamente pela conversação mas, pelo contrário, se realiza no espaço do silêncio da obra, na solidão do leitor. “Mas, se creio que a leitura, na sua essência original, neste milagre fecundo de uma comunicação no seio da solidão, é alguma coisa mais, algo diferente do que disse Ruskin, não creio, apesar disso, que se possa reconhecer-lhe o papel preponderante que ele parece atribuir-lhe” (Proust, 2001, p. 31). Isso porque, segundo Proust, é preciso considerar que há limites no papel da leitura que derivam justamente de suas virtudes. Que virtudes e limites seriam estes? É nos conduzindo à rememoração da experiência de ler na infância que Proust acena para as virtudes da leitura porque seria, exatamente na distância do tempo da obra e do tempo presente ( no agora, passado) que, diante de duas ou três frases que ecoavam como indício de alguém que detinha a beleza ou a verdade por inteiro, embriagados, procurávamos ler a obra completa em vão, porque afirma nosso autor- leitor:
“Logo depois da bela frase ele se punha a descrever uma mesa coberta ‘com uma tal camada de poeira que um dedo poderia nela desenhar caracteres’, coisa muito insignificante a meu ver para que atraísse minha atenção, ficava reduzido a perguntar quais outros livros que Gautier havia escrito que pudessem contentar melhor minha aspiração e que me fizessem conhecer seu pensamento por inteiro.” (Proust, 2011, p. 33).
Uma das grandes virtudes dos livros que lemos estaria, para Proust, no fato de sentirmos que nossa sabedoria começa onde a do autor termina porque quando gostaríamos que o autor nos oferecesse respostas ela só pode nos oferecer desejos: “E nisto reside, com efeito, um dos grandes e maravilhosos caracteres dos belos livros (que nos fará compreender o papel, ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual) que para o autor poderiam chamar-se Conclusões e para o leitor Incitações”. (idem, ibdem).
Para Proust é na aparência com que os livros nos encantam e, ao mesmo tempo, nos decepcionam que reside o encanto da leitura e sua importância para a vida do espírito:
“Estes desejos, ele não pode despertar em nós, senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não poderemos receber a verdade de ninguém e que devemos críá- la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como o começo da nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo o que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram” (Proust, 2011, p. 34)
Todavia, para Proust, haveria certos casos patológicos no processo de leitura que, para nosso objetivo neste texto, mereceriam atenção. O primeiro que pode ser análogo às nossas tentativas de incentivar o hábito de leitura nos nossos alunos corresponde, segundo o autor, aos casos de depressão intelectual para os quais a leitura pode tornar-se uma espécie de disciplina curativa para reintroduzir um espírito preguiçoso na vida do espírito. Tal qual o neurastênico que precisa da ajuda do psicoterapeuta porque está naufragado numa espécie de impossibilidade de querer embora, efetivamente, não tenha nenhuma incapacidade de andar, trabalhar, comer pois seu cérebro, pernas e estômago continuam intactos. Este “doente” sem uma intervenção estrangeira viveria uma espécie de esquecimento de si mesmo que o tornaria brinquedo na mão de todos. Mas essa intervenção seria infrutífera se restrita à mais elevada conversação, aos conselhos mais profundos, mesmo aqueles enclausurados em grandes obras do pensamento.
“O que é preciso, portanto, é uma intervenção que, vinda de um outro , se produza no fundo de nós mesmos, é o estímulo da solidão.Ora, vimos que essa era precisamente a definição de leitura e que não era conveniente senão à leitura. A única disciplina que pode exercer uma influência favorável sobre esses espíritos é, portanto, a leitura: como queríamos demonstrar, à maneira do que dizem os geômetras. Mas, ainda aqui a leitura não age senão sob a forma de um estímulo que não pode, de modo algum, substituir-se à nossa atividade pessoal (…) o psicoterapeuta não faz mais do que restituir ao doente a vontade de se servir de seu estômago, de suas pernas, de seu cérebro que permaneceram intactos.” (Proust, p. 39)
Mas, nos indica Proust, é preciso considerar um caso não mesmo patólogico, todavia ainda mais perigoso de entendermos a leitura. E, é diante desta consideração proustiana, que reside o convite para leitor deste mal escrito artigo para que, enquanto professores de filosofia na escola ou nos cursos de pós-graduação, possamos trocar de lugar: ocuparmos mesmo, vez ou outra, o lugar de algozes ao invés do confortável lugar de vítimas. Para nosso autor, o papel da leitura em nossas vidas é salutar à medida que ela “ é iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar” . Mas quando a leitura, ao invés de despertar para a vida pessoal do espírito, tende a substituir-se a ela, torna-se perigosa porque tal concepção é a de uma verdade “surda ao apelos da reflexão e dócil ao jogo de influências” (Proust, 2011, p.42), tal qual Adorno denuncia em seu texto sobre o Ensaio.
Quando a verdade não parece mais como um ideal que não podemos realizar senão pelo progresso íntimo de nosso pensamento e pelo esforço de nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros como um mel todo preparado pelos outros e, que não temos senão de fazer o pequeno esforço para pegar nas prateleiras nas bibliotecas e, em seguida, degustar passivamente num repouso perfeito do corpo e do espírito (…) Que felicidade, que repouso para um espírito fatigado de procurar a verdade em si mesmo e dizer-se que ela está situada fora dele, nas folhas de in-fólio, conservada com zelo extremo num convento da Holanda, e que se para chegar até lá é preciso esforço, este esforço será totalmente material e não será para o pensamento mais do que um passatempo charmoso(…) A conquista da verdade é concebida, nesse caso, com o o sucesso de uma missão diplomática em que não faltaram nem as dificuldade de viagem, nem os acasos da negociação. (Proust, 2011, p. 40- 41)
Mas ainda não temos aqui encerrado o índice dos perigos a que estamos submetidos como professores, pesquisadores da filosofia ou mesmo leitores porque, segundo Proust, “para o historiador, até para o erudito, essa verdade que vão longe procurar num livro é menos, falando com propriedade, a verdade, ela mesma, que seu índice ou sua prova, deixando, consequentemente, lugar para outra verdade que ela anuncia ou que verifica e que é no mínimo uma criação individual do espírito” (Idem, p. 42). O perigo maior, conforme a análise proustiana, é o o que nos oferece o letrado que lê para reter o que leu, porque não restaria no seu espírito nenhuma atividade original que lhe permitiria separar nos livros a substância capaz de torná-lo mais forte, o livro ao invés de ser um príncipio de vida não seria mais do que um corpo estranho, um princípio de morte ((Cf. idem. p.43). Continua Proust: “Para dizer a verdade o fato dos espíritos superiores serem o que se chama livrescos não prova absolutamente que isso não seja um defeito do ser” (Proust,2011 p.44). É em sua leitura do Mundo como Vontade e como Representação de Schopenhauer que Proust encontrará o contra-exemplo desta atitude no pensador de imaginação capaz de nos oferecer “a imagem de um espírito cuja a vitalidade apoia-se levemente sobre uma grande quantidade de leitura, sendo novo cada conhecimento reduzido imediatamente à parte da realidade, à porção viva que ela contém.” (Proust, 2001, p. 45) Ironicamente, dando-se ao trabalho de sintetizar as quase vinte citações que Schopenhauer utiliza uma após a outra para tratar do pessimismo, Proust considera que tais citações “não são para ele senão exemplos, alusões insconscientes e antecipadas nas quais ele gosta de reencontrar traços de seu próprio pensamento, mas que não o inspiraram em nada” (Idem, ibdem) e termina com a seguinte afirmação:
“Se já me deixei levar tão longe por Schopenhauer, teria prazer de completar essa pequena demonstração com a ajuda dos Aforismos sobre a Sabedoria na Vida que é talvez, de todas as obras que conheço, aquela que supõe num autor, juntamente com o máximo de leitura, o máximo de originalidade, de forma que no frontispício deste livro, no qual cada página contém várias citações, Schopenhauer pode escrever de modo mais sério do mundo: ‘Compilar não é o que convém’. (Proust, 2011, p. 47)
Ora, traçado nosso passeio e, ainda, buscando algumas de nossas referências eruditas sobre a difícil tarefa do filosofar, alguns poderiam afirmar que as belas afirmações de Proust poderiam se configurar como um, não menos belo, pano de fundo para reafirmar a tese deleuziana que a filosofia como criação conceitual depende do autor, depende da assinatura daquele que criou o conceito mediante seu próprio modo de existência que estaria definido por um plano de Imanência. Afirmam Deleuze e Guatari: “Se a filosofia começa com a criação de conceitos, o plano de imanência deve ser considerado como pré-filosófico. Ele está pressuposto, não da maneira pela qual os conceitos remetem a outros, mas pela qual os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não conceitual” (Deleuze e Guatari, 1997, p. 57). Todavia, se nossos autores podem afirmar que “o não filosófico está mais no coração da filosofia que a própria filosofia” e que isso “significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreeendida somente filosófica ou conceitual” (Idem, ibdem), por outro lado, não podem deixar de caracterizar “o filósofo como amigo do conceito” (Idem. p.13). Se os conceitos têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição, segundo Deleuze e Guatari, o “amigo” seria um desses personagens; e a amizade, no processo de criação conceitual, comportaria, talvez, “tanto a desconfiança competitiva com relação ao rival, quanto a tensão amorosa em direção ao objeto do desejo” (Idem, p.12). Poderíamos, então, pensar nos rastros de Proust que a leitura (seja de textos filosóficos ou literários) incitaria o leitor à vida do espírito ou ao processo de criação conceitual, atividade própria dos “amigos do conceito”? Por hora, deixaremos tão tarefa para aqueles que podem pesquisar e entender a obra de Deleuze e Guatari com o método apropriado. Resta-nos, aprender com Proust e com aqueles ensaistas que Adorno dizia que não tinham a vergonha de se entusiasmar com os outros já fizeram:
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Na leitura, a amizade é de repente levada à sua pureza primitiva. Com os livros não há amabilidade. Esses amigos, se passamos com a noite com eles, será porque realmente temos vontade fazê-lo. Não o deixamos, pelo menos esses, senão com remorso. E quando o deixamos, não levamos nenhum desses pensamentos que mimam a amizade: O que é que pensaram de nós? – Será que não tivemos tato? – Será que agradamos? – e o medo de ser esquecido por um outro. Todas essas agitações expiram na soleira dessa amizade pura e calma que é a leitura (…) A atmosfera dessa amizade pura é o silêncio, mais puro que a palavra. Porque falamos para os outros, mas nos calamos para nós mesmos. O silêncio também não traz, como a palavra, a marca de nossos defeitos e esgares. É puro, é verdadeiramente uma atmosfera. Entre o pensamento do autor e o nosso, ele não interpõe esses elementos irredutíveis, refratários ao pensamento de nossos diferentes egoísmos” (Proust, 2011, p. 49-50)
Por isso, mais do que ler tais e tais textos, de tais e quais modos e procedimentos seria talvez necessário o reencontro com o “tão somente ato de ler”. Quanto ao escrever, continuaremos com nossa preguiça inicial, pois nas palavras de Proust acerca dos literatos e do homme de lettres: “Do fato dos homens medíocres serem frequentemente trabalhadores e os inteligentes preguiçosos não se pode concluir que o trabalho não é para o espirito uma disciplina melhor que a preguiça” (Proust, 2011, p. 44)
CITAÇÃO:
- Die Seele und die Formen (As almas e as formas), Berlim, Egon Fleischel, 1911, p. 29. Apud T. Adorno, . “O ensaio como forma” in Notas de Literatura I, São Paulo, Ed. 34 (trad. Jorge de Almeida, 2003, p.15
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W. “O ensaio como forma” In Notas de Literatura I; Tradução e apresentação de Jorge B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 15- 45.
BENJAMIN, Walter Benjamin. “A imagem de Proust” in Obras Escolhidas I- Magia e Técnica, arte e política : Ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução Sergio Paulo Rouanet e prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.p 36 – 49.
DELEUZE, Gilles e GUATARI, Félix. O que é a Filosofia; tradução Bento Prado Junior e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, p.p 11 – 60.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo; tradução Boris Schnaiderman. São Paulo, Ed. 34, p. 30.
PROUST, Marcel. A Prisioneira in Em busca do Tempo Perdido. Tradução Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, pp. 64- 65.
PROUST, Marcel. Sobre a Leitura. Tradução Carlos Vogt. Campinas – SP : Pontes Editores, 2011.