Euler Conrado
O grande pensador e revolucionário Karl Marx formulou, há mais de um século, uma rica teoria de análise materialista da história – acertando as contas com o idealismo e suas variantes – e, ao mesmo tempo, uma profunda análise das categorias dominantes da economia política do capital. Apesar dessa contribuição inestimável para os trabalhadores e toda a humanidade, permanecemos ainda hoje submetidos a uma relação alienada e baseada na exploração de classe. Não conseguimos, ainda, superar o terror capitalista e ingressar num novo sistema social, o comunismo.
Para muitos, o comunismo seria uma espécie de continuação natural no desenvolvimento da civilização humana. A própria leitura simplificada do marxismo indicava uma espécie de destino pré-determinado, que passaria das formas anteriores de sociedade – escravismo, feudalismo, capitalismo, até atingir o comunismo – dando, portanto, uma ideia de avanço continuado e automático, ainda que marcado por retrocessos, nas mudanças e permanências.
O capitalismo de fato incorporou muitos elementos culturais de antigas formas civilizacionais – elementos da cultura popular, de costumes, de preconceitos, religiosos, etc., quase sempre reforçadores das lógicas internas do capitalismo. Por exemplo, o papel que parte das igrejas, como a protestante, desempenhou na consolidação da lógica interna do capitalismo na disputa individual para a obtenção de lucros ou vantagens. Ou, ainda, nos preconceitos machistas, favorecendo a superexploração das mulheres; ou na apologia da família como célula básica da pátria – dois conceitos apropriados pelo fascismo, e, dentro da família, novamente o papel da mulher como guardiã espiritual do marido trabalhador explorado que chega em casa arrebentado e é remediado pela dócil esposa; ou dos filhos, que deveriam ser adestrados para continuarem trabalhando para os ricos, etc. Isso sem falar na questão da terra – ou do latifúndio, que foi devidamente incorporado ao capitalismo em países como o Brasil, e que ao invés de denotar “atraso” para o desenvolvimento do capitalismo – como muitas vezes defendeu a esquerda – representou de fato uma forma desigual e combinada de realização da reprodução do capital.
Em certa medida, essa incorporação pelo capitalismo dessas diferentes realidades, bem como seu desigual desenvolvimento das forças produtivas – acelerado pela disputa entre os diversos setores da burguesia – acabou propiciando a criação de teorias equivocadas como a da dependência, ou da divisão do mundo entre países ricos e países pobres, dando origem à ideia de que era preciso desenvolver o capitalismo nos países pobres para, bem depois, poder se pensar numa forma social mais desenvolvida. O capitalismo é visto, nesse particular, como uma disputa entre países, ou entre diferentes governos, o que esconde a essência de classes e toda a lógica voltada para a reprodução do dinheiro. Uma outra variante que prevalece é a busca de uma espécie “nacional”, uma espécie de caminho próprio e original que cada povo em seu território nacional teria que descobrir.
Mesmo o capitalismo já tendo se tornado um sistema hegemônico mundial há mais de dois séculos, pelo menos, ainda se defendia não a superação deste sistema como um todo por outro, mas o cumprimento de uma espécie de “teoria da escada” (créditos para Euler rsrs), na qual se deveria subir um degrau de cada vez: já havíamos passado por vários degraus anteriores – escravismo, feudalismo, capitalismo… – só que, dentro do capitalismo, ainda haveria um “subdegrau” a subir: o de um país capitalista atrasado para o de um capitalismo desenvolvido. Só então teríamos direito a um lugar ao sol. Ou ao céu, no inferno do capital. Haja crença!
Nessa mesma linha de raciocínio, a esquerda mundial passou a defender pequenas reformas no interior do capital, como possibilidade imediata para a solução de problemas como a fome, o desemprego, a falta de moradia, de transporte público, etc., colocando tais bandeiras na cota das lutas anticapitalistas. O que não é o caso. A defesa da gerência do Estado burguês de forma mais eficiente se tornou a grande “descoberta” de uma esquerda que se rendeu ao capitalismo.
Na verdade, diante da incapacidade de colocar em prática os estudos iniciados por Marx, a esquerda aderiu à pressão dos sintomas, das aparências, renegando com isso o que de mais caro Marx produziu, que foi a revelação da essência do capital, de suas leis internas – a lei do valor, a mais-valia, a tendência à acumulação e centralização de capitais, as contradições inerentes ao processo de reprodução do capital, a superexploração da força de trabalho, etc. Tudo isso a revelar a inviabilidade de quaisquer soluções internas que atendessem aos interesses da humanidade como um todo – e à própria sobrevivência do planeta Terra, como tem sido demonstrado.
Toda essa fantástica fonte de estudos e análises foi, na prática, renegada, subestimada, e na maioria das vezes incompreendida. Em nome do marxismo, ao longo de décadas, defendeu-se a construção e o desenvolvimento do capitalismo nos países ditos “atrasados” como sendo uma etapa necessária para se pensar em comunismo. Distante, portanto, do que a teoria e a prática de Marx, Engels e outros que apaixonadamente lutaram pelo fim do capitalismo e a construção de um outro sistema, que ficou conhecido como comunismo.
A socialização dos meios de produção e da sua apropriação direta pelos trabalhadores dará início à novas relações sociais.
Em grande medida, contribuiu para que a esquerda aderisse a essas teses de melhoramento interno do capital o fato de terem sido derrotadas as experiências dos chamados países socialistas. Aqui nos defrontaremos sempre com um paradoxo moral, histórico e real. Isso porque é impossível não reconhecer o valor moral e ético de milhões de lutadores sociais que deram suas vidas na luta por uma suposta sociedade comunista. Na prática, contudo, nenhum dos países que ficaram conhecidos como “socialistas” jamais saiu do domínio do capital, da lei do valor, de sua lógica interna de reprodução.
Países como Rússia e China, por exemplo, não é que “deram errado”, como se costuma dizer. Alguns arriscam a dizer que ali o capitalismo chegou a ser derrotado, mas depois foi restaurado. Numa análise sincera, considerando a lógica interna do capitalismo, podemos dizer que são territórios que conseguiram importantes avanços sociais relativamente em poucos anos. Mas, não para o comunismo, e sim, no interior do capitalismo, do qual nunca saíram.
E não é difícil entender isso, se deixarmos de analisar as coisas pela superficialidade da disputa pelo poder ou geopolítica, entre países e governos com sua fraseologia ideológica, e analisarmos segundo a lógica da luta de classes, buscando entender a essência do capital, enquanto sistema que se tornou hegemônico, baseado na reprodução quase automática na sua lógica interna de mais dinheiro, mais lucro enquanto fim em si mesmo. O comunismo é a antípoda, o oposto, a negação de tudo isso.
Na prática, o que se verifica, ao invés da construção de um movimento internacional anticapitalista para quebrar a espinha dorsal do capital e superar esse sistema de forma radical, mudando as relações sociais – que não seriam mais mediadas pelo dinheiro, pelo lucro, mas por relações de solidariedade, com a socialização dos meios de produção e o fim do mercado, do estado, das hierarquias, das classes sociais -, a esquerda adotou o papel de um dos polos de sustentação do capital. Direita, esquerda, centro, deem a nomenclatura ideológica que quiserem, mas, de fato, o que prevalece, em comum, é a veneração às categorias internas do capital e não a sua absoluta destruição e superação.
É lógico que na disputa política interna, há diferenças entre esquerda e direita, estando a primeira a lutar por melhorias nas condições de vida da maioria da população, enquanto que a outra defende de forma mais ou menos agressiva a manutenção descarada de privilégios, superexploração e vantagens para um seleto grupo de pessoas e empresários. Mas, é preciso que esclareçamos as coisas: essas diferenças estão ainda ligadas a um mesmo universo, do capitalismo. E, na prática, trata-se da disputa por uma fração maior ou menor da mais-valia (trabalho não pago) arrancada dos trabalhadores pelos capitalistas no processo de valorização do valor-dinheiro.
Portanto, embora se trate de uma diferença que deva ser moralmente considerada – uma vez que se trata, por exemplo, de matar ou não a fome de milhões de pessoas, ou deixá-las ao relento, mediante política pública ligada ao mandato temporário deste ou daquele político ou governo, da esquerda ou da direita, não se pode, por outro lado, trocar uma coisa por outra. Até por uma questão de honestidade intelectual, não se pode denominar de luta anticapitalista aquilo que, na essência, não apenas preserva como até mesmo ajuda a salvar a reprodução do capital. Políticas como Bolsa Família, Renda Básica e outras, que retiram da fome milhões de pessoas, não representam e nem incentivam o fim do capitalismo. Pelo contrário, como reconhecem as lideranças mais autorizadas da esquerda, ajudam a “aquecer” a economia. Qual economia? A do capitalismo, claro.
As lutas imediatas, por exemplo, por melhores salários e condições de vida, provocadas pelo agravamento nas condições de trabalho e nos cortes de direitos dos trabalhadores, são extremamente importantes não apenas para garantir melhores condições imediatas para os trabalhadores, como também para melhorar o nível de consciência e organização coletiva do proletariado. Mas, essas bandeiras estão obviamente presas à lógica interna do capitalismo. E são provocadas pela dinâmica interna da luta de classes, independentemente de partidos e vanguardas autoproclamadas. Num sistema comunista – é preciso que repitamos isso – não haverá burguesia nem proletariado. Não haverá exploração da força de trabalho para arrancar lucros. Não haverá sistemas hierárquicos coercitivos, voltados para a garantia da produção de mais dinheiro como fim em si mesmo.
Portanto, essa luta imediata, por mais radicais que sejam as suas formas – greves, ocupações de fábricas, formação de comissão de operários, etc – não desembocam automaticamente num outro sistema. E na maioria das vezes, como tem sido demonstrado pela história, acabam se tornando um fim em si mesmo, voltadas para a disputa de uma fração da mais-valia arrancada pelos patrões.
Tudo mantido no interior do capital. O que poderia ser diferente se estivessem associadas a uma reflexão coletiva crítica e auto-organizada na perspectiva de destruição e superação do capitalismo. As lutas imediatas e até até mesmo aquelas que se dão na esfera da chamada “política”, como as eleições – que são expressão do mundo invertido das relações capitalistas – vão continuar enquanto houver capitalismo. A questão que se coloca é: como conseguir dar um salto de qualidade, associar de fato – e não apenas como citação bíblica – tais lutas a um programa e a uma prática de superação revolucionária do capitalismo. Honestamente, não se percebe nenhum esforço nessa direção, a não ser obviamente por alguns poucos intelectuais e militantes isolados.
Os trabalhadores vão continuar se organizando e lutando para melhorar suas (nossas) condições de vida. Independentemente inclusive de qualquer “incentivo” de fora. Só não temos o direito de pensar que essas lutas imediatas, por si, conduzirão espontânea e automaticamente à destruição do capital. E o que é pior: o capitalismo, pela sua natureza autodestruidora, tem maiores possibilidades de se destruir – e destruir tudo a sua volta – do que as lutas intestinas que ocorrem no seu interior avançarem para um sistema pós-capital de forma espontânea.
O capitalismo é um sistema que se auto reproduz, e ao fazê-lo, provoca, pela suas leis, a contradição principal entre o proletariado e a burguesia, mas também disputas na própria concorrência entre frações e grupos da burguesia – gerando, com isso, conflitos internos que não representam a sua negação enquanto sistema, mas, disputas de polos e grupos em torno de um mesmo universo. É como se todos girassem em torno de um mesmo centro aparentando mudanças, mas mantendo-se presos a este mesmo centro. Como um pião girando em torno de si mesmo.
Um paradoxo real nesse redemoinho é que as conquistas obtidas nas lutas muitas vezes acomodam, arrefecem, ao invés de representar um acúmulo real para a superação do capital. Os melhores salários obtidos propiciam imediato aumento no consumo – que aquece a economia capitalista – e a melhoria na qualidade de vida daquela fração de trabalhadores que obteve a conquista. Da mesma forma, a conquista de cargos no legislativo ou nos governos provoca distanciamento das lutas reais por parte de lideranças dos movimentos, com a imediata mudança na vida dessas pessoas com melhores salários e outras condições diferenciadas em relação ao cotidiano dos trabalhadores. E os eleitos passam a se comprometer com a gestão da crise do capitalismo e não mais em lutar para destruir o capital – seus aparelhos, suas instituições, suas relações de exploração. Tudo volta, ou melhor, continua a girar em torno da dinâmica da reprodução do capitalismo.
Romper com esse centro – e esse cerco – será, necessariamente, obra coletiva e consciente de milhões de trabalhadores auto-organizados, local e mundialmente. Como associar as lutas e demandas imediatas pela sobrevivência – na disputa interna com os capitalistas pela mais-valia arrancada dos trabalhadores – sem se deixar cooptar pelo sistema permanece sendo o grande desafio. Como construir um grande movimento internacional, horizontal, capaz de produzir uma reflexão crítica do capital e ao mesmo tempo capaz de preparar a superação e a construção prática do comunismo?
Imagino que isso só se dará quando os trabalhadores perceberem suas lutas imediatas como momento de resistência – e não de fim em si mesmo; de acumulação real de força organizada e consciente, a preparar a derrubada definitiva do capitalismo. O que se dará com a socialização dos meios de produção e da sua apropriação direta pelos trabalhadores, dando início à novas relações sociais, não mais baseadas no dinheiro ou qualquer outra forma fetichista, mas em relações solidárias, conscientes, horizontais, voltadas para a realização humana, de suas demandas construídas coletivamente de forma sensível e racional; e não mais subordinadas ao lucro, à propriedade privada das fontes de vida, aos cargos estatais e empresariais. Um sistema que, na sua essência, nada tem a ver com capitalismo que, como demonstrou Marx, transforma as relações entre as pessoas em relações entre coisas, subtraindo a beleza das diferenças humanas.
Construir essas novas relações não significa que devamos abandonar isoladamente tudo o que fazemos – o que não é possível, mas, ao lado dessas lutas imediatas, ir construindo um movimento anticapitalista, uma cultura comunista, uma práxis anticapitalista, até formamos um movimento local e internacional dos trabalhadores com tal força que seja capaz de travar a batalha decisiva pelo fim do capitalismo. Associar as lutas imediatas com as novas relações comunistas é conseguir, de fato, construir uma teia, uma rede, uma associação internacional que estruture as novas relações sociais. O proletariado precisa aprender a assumir diretamente o que ele já faz – é ele quem produz todas as riquezas do mundo, que são apropriadas pela burguesia, que nada produz. Romper de forma prática com essa contradição é o desafio cotidiano do proletariado enquanto classe para si.
Euler Conrado é historiador e membro do Conselho Editorial de A Comuna.