Renata Cordeiro Navarro
Resumo: Nessa trajetória conceitos ligado a religião, estética, astrologia, intuição entre outros caminhos que a humanidade cria para de uma forma colocar sentido e raízes no mundo, terão visibilidade para refletir sobre suas justificativas de existência, mostrando como trocamos um conhecimento por uma ilusão, trazendo felicidade ou infelicidade, o importante para muitos é distorcer uma ideologia para pressupor que a essência das coisas é a mesma de nossos corações.
Palavras-chave: humano, linguagem, moral, genealogia, verdade.
NIHILISTIC APPRECIATION AND DISREGARD FOR THE FACT
Abstract: In this trajectory of concepts related to religion, aesthetics, astrology, intuition and other paths that humanity creates for a way of putting meaning and roots in the world, showing visibility to reflect on its justification of exposure, showing how to exchange knowledge for an illusion, bringing happiness or unhappiness, the important thing for many is to distort an ideology to pressure that the essence of things is the same of our hearts.
Keywords: human, language, moral, genealogy, truth.
Introdução
Friedrich Wilhelm Nietzsche, foi um filósofo , filólogo , crítico cultural , poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha . Escreveu vários textos criticando, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora , ironia e aforismo . Estudioso de línguas clássicas, como o latim e o grego antigo, autor de uma vasta e polêmica obra. Seus livros deixaram os primeiros indícios do surgimento da filosofia contemporânea, ele dedicou-se a estudar a moral judaico-cristã e operou uma espécie de comparação das sociedades antes e depois do cristianismo, tendo classificado este como o fator central do enfraquecimento do ser humano na era moderna. Pode ser considerado um autor cuja vida e biografia influenciaram a produção e recepção de sua obra.
Nietzsche em seu livro “Humano demasiado humano” expõe diversas problemáticas, sendo uma delas, o apreço pelas verdades dos sentidos humanos, a vida se torna sempre cada vez mais espiritual aos olhos do homem que devota suas crenças e sabedoria intelectual na metafísica ou em miraculosas verdades pouco vistosas. Uma pauta interessante nessa discussão é o equívoco do sonho, onde confundimos incessantemente nossa razão por fugazes semelhanças, Friedrich relata que nossa confusão era a mesma de povos antigos, que criaram suas grandes mitologias. Isso nos faz pensar a ciência, uma civilização na grécia antiga não carregava a linguagem adquirida no nosso mundo atual, então como era visto o sonho naquela época?
Talvez reconhecimentos imperfeitos, assimilações errôneas, que causavam raciocínios ilógicos ou até mesmo delírios sem ao menos chegar a estágios de loucura. Tudo por conta de nossa mente, a grande manipulação interna de manter os olhos fechados não só literalmente, mas metaforicamente, nos fechar para o mundo e nos esconder de si mesmo.
- As formas equivocadas de interpretação do mundo
A filosofia se separou da ciência por não se encaixar em perguntas que denotam utilidade, é perceptível uma preocupação do mundo de desejar o que vai lhe servir, deixando de lado a utilidade mais importante, sendo ela a do conhecimento. Tornando a ciência desmancha-prazeres, onde o ser deixa de acessar sua capacidade de interpretação sensível, por optar em aceitar doutrinações pré-estabelecidas.
“Qual é o conhecimento do mundo e da vida, com o qual o homem vive mais feliz? Isso foi perguntado nas escolas socráticas: em vista da consideração da felicidade foram atadas as veias da pesquisa científica – e ainda hoje se faz isso.” (HDH, p. 29)
Nesse trecho fica visível, que a pesquisa científica é utilizada para responder todas as perguntas do mundo, das mais simples à mais complexas, se desmembrando da filosofia por trazer respostas que se baseiam em estatísticas, estudos psicológicos e trabalhos a campo, fazendo dessa forma uma barreira para que não exista críticas sobre suas resoluções. Um iluminista do século XX, David Hume, carrega argumentos céticos e empíricos ao investigar seu entendimento da humanidade, uma de suas impressões é não sermos capazes de pensar o que não é pensável, desta forma só mostra que não será possível superar uma totalidade de explicações sobre nosso universo, verdades absolutas refletem espíritos científicos. Observamos a vida com pressupostos humanos, tudo aquilo que até agora nos tornou hipóteses metafísicas foram geradas pela paixão ou o erro de se enganar de si próprio, o mundo metafísico é um ser-outro, inacessível e incompreensível para nós, mas mesmo assim essa visão não é o bastante para acalmar uma mente pensante.
Esse discurso se torna interessante para mim, pois sendo jovem, aprecio explicações metafísicas, porque elas me mostram nas coisas que acho desagradáveis ou desprezíveis, algo de significativo, depositando meu interesse em minhas insatisfações do mundo, aliviando meus sentimentos. Vejo um duplo benefício na metafísica, sendo um deles se encarregar de causar efeitos de irresponsabilidade com a vida, mas não obstante de minhas ideias compreendo que mais tarde os meus problemas talvez vão se inflamar ainda mais, por começar com uma mente mais madura desconfiar de todo esse gênero de explicações. Encontrando relevância nesse meu ativo defeito comum, de partir do homem atual para pensar um objeto, involuntariamente criar “ aeterna verdade”, termo usado no livro para designar verdades eternas do homem, cocriando um elemento estável no meio de todos os turbilhões de medidas que servem para assegurar fatos, não é equivalente me fazer num espaço de tempo limitado de minha vida na terra verdades incontestáveis. A leitura desse livro se tornou essencial para quebrar paradigmas nas comunicações do meu eu para com os outros.
A metodologia desse estudo me faz investigar e autenticar meu senso de observação, ganhando impacto refletir sobre essas ideias, que seja atualmente ou em épocas tão antigas um assunto oposto ao rumo de quase toda a espécie humana, nos prender em arranjos religiosos e premissas que talvez nunca terão comprovações, mesmo essas continuarem sendo visões de mundo, assuntos que carregamos em nossa fé, para nos fazer criar raízes neste mundo o qual achamos que nos pertence.
A leitura do livro “Humano, Demasiado Humano” teve como objetivo me trazer luz para os temas que mais me causavam curiosidade, assim me fazendo conhecer o autêntico valor da vida, amadurecer ideias e ter apreço pelas verdades pouco vistosas às de meus sentidos. Foi de grande aprendizado os ensinamentos para pensar as diferentes formas de ver o mundo, fazendo negar minha origem, meu meio, posições e ofícios, para dessa forma observar como nossa opinião é dominada e alienada pelos pontos de vistas da época que vivemos.
Esta obra de Nietzsche aborda uma genealogia do pensamento moderno na razão humana, analisando seus mais diversos aspectos, buscando vislumbrar perspectivas para um progresso. Em seu livro existe uma preocupação com o modismo, já que grandes grupos de pessoas seguem ideias abstratas por designarem como algum tipo de conhecimento, mesmo esse saber não trazer verdades para um futuro seguro. Desta forma Friedrich exalta a distinção entre ciência e ciência positiva, colocando em pauta a importância de resultados que acrescentem nos avanços sociais, e fazendo desaprovação de pesquisas que têm enfoque responder de maneira generalizada desejos, vontades, sentidos e emoções humanas. Sendo assim fica evidente o domínio que a ciência busca em adquirir respostas para tudo, mesmo fazendo exclusão à casos particulares.
Obtendo agora espaço para discutir a imensidão que a liberdade de imaginar nos leva, a religião é um outro exemplo de procura da verdade, mas esta percorre pela criação fantasiosa de deus, em cima da figura de Jesus de Nazaré, desfrutando da metafísica e do poder da crença para mover nossa mente para um mundo muito mais divino do que humano, e fazendo uma sátira ao título do livro, poderíamos dizer “Humano, demasiado pouco humano”. A reflexão diante a este cenário se manifesta de forma avassaladora, buscando investigar a possibilidade da atuação da mente pré-histórica em tempos contemporâneos.
A inquietação do autor era justamente com a necessidade que homem tem de se apoiar no caos primordial das sensações (algo que acreditava-se ser apenas mal de época, se alastra até os dias atuais), logo me faz pensar que esse progresso é mais um item de nossa euforia, deixando os sentidos confundirem a nossa razão e alterarem nossas suposições sobre as coisas. Não é necessário ir muito longe para perceber que muitos autores dentro da filosofia criticam essa evolução do pensamento, visto que essas convicções caracterizam ideologias permanentes durante muitos períodos.
Diante dessas verdades errôneas se criam outras, fazendo uma gama de conhecimentos inválidos que depois se tornam base para novos conceitos que se constroem em meio à erros primários, como exemplo da linguagem, acontece o mesmo desenvolvimento de um ciclo duvidoso as novas descobertas e conquistas da língua.
“Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal.” (A Verdade e as Formas Jurídicas, p. 13)
Eis uma análise da história da religião que é totalmente falsa, pois admitir que a religião tem origem em um sentimento metafísico significa, pura e simplesmente, que a mesma já está dada, ao menos em estado implícito. Pois bem, a história não é isso, não é dessa maneira que se constituem fatos. A religião não tem propriamente uma origem, ela foi inventada e fabricada, em um dado momento histórico algo aconteceu para sua existência se tornar necessária, fazendo preciso sua aparição, contudo uma relação de poder sobre os outros, vindo de uma grande usina que produz o ideal por uma série de mecanismos. Por puras obscuras relações de poder que a religião foi inventada, a pequenez meticulosa e inconfessável origem fabricada. O conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana, é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos:
“O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem, ou, inversamente, não há no comportamento humano, no apetite humano, no instinto humano, algo como um germe do conhecimento” (A Verdade e as Formas Jurídicas, p.16)
As crenças seriam válidas se vivêssemos em realidades paralelas a esta, uma vez que temos acesso as influências da mídia, da ficção, do medo, ou até mesmo na busca de “atalhos” para alcançar soluções de nossos problemas, a fé nesses sentidos acaba se tornando um processo muito mais fácil de obtenção, pelos belos discursos muito bem preparados, que causam efeito de verdades incontestáveis e também na manipulação em massa de usar narrativas universais, que com sua ampla “lógica” alcançam diversos indivíduos. “Quando cessaremos de ser obscurecidos por todas essas sombras de deus, quando conseguiremos desdivinizar completamente a natureza?”
“Não é natural a natureza ser conhecida”- Nietzsche (Gaia a Ciência: parágrafo 109)
- O conceito racional em contraposição ao real
Não há sistema racional capaz de abarcar a vida em seu todo, é um erro tentar compreender ou dominar nossa existência com a razão, e essa investigação nos coloca a par da crítica feita pelo autor diante ao apolíneo (lado luminoso de ordem) e o dionisíaco (lado tenebroso da desordem), que com a harmonização de ambos teríamos a obtenção de um equilíbrio expressivo em relação a vida, portanto o que acontece é uma absolutização apolínea como o valor supremo, em outras palavras, um pensamento extremista dialético, deixando de lado todos os princípios criativos da dimensão dionisíaca, a qual é reflexo dos instintos humanos. Encontrando então uma exposição desumanizadora a qual exige padrões quase que perfeitos, como tendência cultural dominante, gerando seres com exigências distintas as reações naturais. O problema está em absolutizar o meio racional para manter controle, como diz Nietzsche a vida está aqui para ser vivida e não pode se resumir na racionalidade argumentativa pela qual nos sujeitamos diante ao meio.
Os problemas não são vividos, pois cria-se uma esperança em algo distante para justificar as dores, as frustrações e as limitações, negando-se a vida em prol de explicações e fundamentações fora dela. Para o filósofo, a racionalidade, a via científica e a religião são modos de discordância com a vida. Quando ele afirma a morte de deus, logo nasce uma nova moral dionisíaca carregando a aceitação dos valores vitais, visto que o cristianismo é a negação do real, do concreto, do inalcançável, concebendo-se outra realidade. É necessário não somente que deus morra, mas que não se coloque nada – razão, ciência, moral, etc. – em seu lugar.
Surgindo um novo termo em nossa análise, o “Amor Fati”, frase latina que significa “amor ao fato”, à vida definitiva com todos os seus gozos e dores são propriamente vivos à cores, diferente de concordâncias além desta.
Acreditamos cegamente nos valores que nos são impostos, junto de diversos conceitos, os atos morais, que se sustentam em substâncias de peso exacerbado enraizados na sociedade, aliados à tradições, leis e influências institucionais, de modo que reafirmam a garantia de sua veracidade na moral, concebendo exclusão para contestações à seu respeito, partindo do pressuposto de uma elaboração de “bem e mal” a partir de costumes e práticas de manipulação comportamental de um grupo. Como filólogo que é, Nietzsche faz um estudo da linguagem, onde acentua a origem de reflexos morais incorporados propriamente na linguística, palavras trazem um caráter estritamente político, que passa por conceitos psicológicos, decretando intencionalidades propriamente aplicadas, inseridos na sutileza imperceptível de diálogos espontâneos repletos de caminhos pré-estabelecidos, implantando em si julgamentos. As relações de poder deram origem a ideias, valores e crenças, logo sem a vontade de questionamento imergimos e nos tornamos refém das regras expostas por criadores utilitaristas, para justamente haver assimilação aos padrões requeridos.
Uma grande proposta é apresentada pelo nosso filósofo alemão, transvalorar todos os valores que foram recebidos e negados ou intitulados como proibidos. É fazer uma releitura mais aprofundada, tirando a visão sagrada do ser humano para suspeitar do valor moralista existente, e em conjunto da genealogia pretende-se desvalorizar os valores prevalentes até então. Transvaloração é rompimento com o homem ideal pela tradição, para que se tenha o homem real, este que não segue ou sofre as consequências de não aderir aos valores impostos, isto é, não ter medo de ser tachado como imoral por não segui-los. O mundo sensível em que vivemos ganha outra forma na filosofia de Platão, fixando grandeza mais no mundo das ideias do que supostamente o mundo real, diz Nietzsche que tanto a moral como também por exemplo o cristianismo é um platonismo vulgar para o povo, trata-se, portanto, do niilismo, ênfase no “nada valorado ou divinizado”.
Venera-se um além imaginário, batizado de “o ser”, de modo a tentar encontrar sua imagem e semelhança, com ideais do pensamento base antropocêntrico, pois se desloca de sua dor original e acolhe a dádiva de viver pela metafísica oferecida. Procuramos razões maiores para ressignificar o poder vital, curar a ferida eterna do existir, de modo que sentir uma conexão que lhe traz um bem estar, seja em conjunto ou uma experiência individual, é sinônimo de ligação com algo divino, distinguimos à vibração de potência inconsciente entre os seres, os quais visivelmente possibilitaram a existência de algo, por sentidos imagéticos com abstrações intangíveis. A busca pelo equilíbrio mental das sensações acarreta muitas vezes a procura por um contato com o divino, tornando para aquele que crê, uma fé ligada ao pertencimento do mundo e esperança em relação a ele, como se estivesse sendo acolhido e cuidado na sua trajetória na Terra, assegurando também uma ideia de que ele próprio poderá se sustentar à esta crença quando as situaçõe saírem do autocontrole fantasioso individual, uma vez que encarar as frustrações para muitos é se debruçar em realidades fabuladas tornando isso forma de te reerguer diante ao mundo.
“Temos a arte para não morrer ou enlouquecer perante a verdade”, frase de Nietzsche onde o autor coloca ênfase de que somente a arte pode transfigurar a desordem do mundo em beleza e fazer aceitável tudo aquilo que há de problemático e terrível na vida, logo poderia aqui relembrar a afirmação de Deleuze: “a arte cria perceptos e afectos”, para o surgimento de uma hipótese diante ao artigo, sendo esse conjunto de sensações em que pessoas dividem e compartilham uma forma de expressão á deus, criar-se um sentimento de força, que em outra forma de linguagem essa potência interna de se conectar consigo a com os outros ganhe um impacto de crer em uma força maior, transcendendo seu lado espiritual, distinguindo-se do próprio poder vital do ser, conexão humana e ligação mental em troca de tornar aquilo divino, ou seja, fazer deste fato belo um apreço niilista. Muitas vezes procuramos gratificações imediatas sobre o que sentimos em resoluções rápidas.
O filósofo alemão critica a noção de livre-arbítrio da vontade, uma vez que para ele essa ideia foi incutida ao pensamento ocidental pelo cristianismo como objeto de controle do homem. Há uma falsa sensação de vontade autônoma, o indivíduo é influenciado em sua decisão, o faz por eleição e é justamente neste momento que os padrões e valores previamente estipulados podem alterar o caminho escolhido.
Nossas escolhas criam raízes pertencentes ao externo e nosso movimento diante ao acreditar se direciona como ‘esponjas’, a absorção tem caráter determinista, onde a escolha se compõe a partir da liberdade negativa, como uma falsa sensação de seres livres, no entanto alienados pelo seu meio de posicionamentos convencionados. A existência de diversas instituições religiosas denotam também formas de se encaixar em conspirações mais cabíveis as nossas ideias, sendo apenas mais uma forma de fugir dos problemas, manipular uma nação ou até mesmo um aparato necessário para a vontade de resistência de muitos. ‘Übermensch’ diria para transferir essa vontade em potência de si, superar o comum para se reerguer e viver o habitual, mantendo impulsos reais para em um futuro não se questionar de falsos movimentos.
Para Nietzsche ser livre é ser autêntico sem influências de nenhuma ordem. O homem livre para ele é aquele que tem condições de estabelecer seus próprios valores.
A liberdade é fundada na essência humana, de forma artística e criativa. O homem livre é aquele que se desprende dos moldes e se volta para si, se identifica e se lança a vida com todas as suas nuances, sejam elas belas ou trágicas.
Acatamos muitas de nossas convicções para causar reconforto à aparência do externo, consolar emoções internas, e nos manter seres pertencentes a esse mundo o qual nos sentimos órfãos. Existe um desejo de acreditar no irreal e criar um sentimento de “fazer bem pensar”, pois o mundo é uma grande imersão de regras, aspirar algum tipo de autonomia é escolher viver em próprias verdades, de forma que para alguns a ignorância é uma benção.
O caráter do mundo é o de um caos eterno; não devido à ausência de necessidade,mas devido à ausência de ordem, de encadeamento, de formas, de beleza e de sabedoria. O mundo não procura absolutamente imitar o homem, ele ignora toda lei, abstenhamo-nos de dizer que existem leis na natureza e de que seres são totalmente previsíveis.
- A negação do niilismo transcende a imanência da vida
Se não existe nada além desta existência, há de se concluir que apenas ela merece nosso amor. Aprender a amar nosso destino, encontrar beleza no necessário, esta é a grande lição de Nietzsche já no fim de sua produção intelectual. Este talvez seja seu último grande ensinamento, aquele que o filósofo levou mais anos para interiorizar: dizer sim à vida, porque só ela existe e somente ela carrega valor em si mesma.
Afirmar a realidade e viver em sintonia consigo mesmo. Contribuir assim para que tudo se torne mais belo, mais forte, mais potente. Esta lição serve tanto para momentos de felicidade como para momentos de desespero. Transformar o “foi assim” em “eu quis assim” dá um sentido próprio ao que acontece em nossa vida. A parte não pode ser separada do todo.
Tornamo-nos assim profundamente ligados ao que somos porque é exatamente aquilo que podemos ser. Aquilo que nos constitui, nossas forças mais íntimas (Vontade de Potência), vão sempre ao seu limite. Amor fati (do latim, amor ao destino) implica em aceitar o que nos foi dado e tirado. Todos os acontecimentos se inserem numa ordem causal da natureza, assim como cada um de nós. Portanto, só podemos concluir que nada poderia ter acontecido de outra forma, nada poderia ter sido diferente, de nada adianta nos lamentarmos. É preciso afirmar até mesmo o erro, afinal de contas, ele não é um erro! Pensar o ‘destino’ nos coloca de frente com a inevitável dúvida sobre como nossas ações certamente vão interferir na sequência de fatos posteriores a um pensamento inicial, e como o meio equivalente a este presente de nossa caminhada terá desfecho para o nosso fim último. Por um lado crer na ordem cósmica de sua autodescrição pensando em um futuro previamente seguro (mortal), que demarca no espaço tempo uma sucessão inevitável de acontecimentos; ou simplesmente a ordem natural de um porvir totalmente baseado na liberdade de nossas escolhas, logo nos tornarmos agentes da nossa incógnita primária, a morte. Não existe destino demarcado, existe destino como futuro funcional a nossas ações sobre a vida, em detrimento absoluto apenas as forças ativas, em outras palavras o sujeito molda sua trajetória com o que lhe é concedido o poder de alteração.
Todo acontecimento é absolutamente necessário, pois aquele momento só pode ser interpretado como um erro, no momento em que tomamos formas superiores e transcendentes para nos guiar, nos inserimos em ideias que vão além da realidade para fazer de suporte, como a metafísica, a razão ou a ciência. A exortação de apropriar-se do que aconteceu nos torna capazes de seguir adiante! O bom e o ruim, a dor e o prazer, são inerentes à vida, amar o que nos acontece e nos acontecerá é o primeiro passo para nos tornarmos o que somos. Não precisamos mais esperar um poder exterior para justificar esta realidade, não há uma moral superior, não há um destino que justifique o mundo. O homem precisa dar conta de si, ele mesmo precisa criar sentido e justificar a realidade, transvalorar os valores. Dar sentido, dar valor, é amar.
“Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, enamorado, oh, assim amais vós o mundo, – vós, eternos, o amais eternamente e a todo tempo: e também a dor dizeis: passa, mas retorna. Pois todo prazer quer – eternidade!” – (Assim Falou Zaratustra, Quarta Parte)
Nos questionamos de nossa eterna felicidade quando nos comparamos, se concretiza uma forma de idealização que traz ao subconsciente uma inevitável falta, a qual causa o desejo, este enraizado ao sentimento de insatisfação, pois somos movidos pelo meio. A ideia de amor aos fatos e ao próprio destino te coloca a par do reconhecimento de sua liberdade de escolha, explicitando que apenas a força ativa perante a vida traz possíveis consequências seletivas à esta influência, a qual podemos reconhecer como uma cadeia sistêmica absolutamente corruptível dos nossos prazeres e pretensões. Espera-se pela vida o além do possível, atingir as infinitas possibilidades existentes, originando uma dicotomia de ideologias na “esperança”: onde o sujeito se desloca mentalmente ao passado persistindo na falta de aceitação, em dis concordância com seus feitos; ou o ser vivente localiza sua mente no tempo futuro, utilizando da ansiedade e da fé em sua trajetória no eterno porvir. Observando essa dualidade, fica evidente a dificuldade de viver o presente e se dar conta do imenso instante do tempo vital.
“Alguns milênios serão necessários para o mais potente dos pensamentos” – Nietzsche (Escritos Póstumos)
A forma homem é velha e caduca, ela vai errar sempre porque ainda está presa em ídolos metafísicos, presa à forma. É preciso deixar a forma-homem para trás para afirmar aquilo que passou e mais, amar aquilo que passou, porque assim deveria ser, por toda a eternidade. Redimir o passado, desatar os nós do ressentimento, dissolver a má-consciência, para que o amor fati seja um conceito que consiga se inserir para uma tarefa maior. Devemos afirmar o destino e a vida, negando toda calúnia, toda desvalorização, toda acusação que possa ser feita contra ela. Mas este ensinamento é muito mal compreendido.
“O homem é algo que deve ser superado” – (Assim falou Zaratustra, prólogo)
O amor fati não implica em resignação, sua lição não é de aceitação passiva, muito menos um acovardar-se! Não devemos abaixar a cabeça e aceitar tudo, muito menos virar a outra face. Amar ao destino significa afirmar o que tinha que ser sem deixar de afirmar a vontade de potência, em si e no mundo. E negar os negadores é uma forma de afirmar! Por isso a luta também faz parte deste amor; não se pode apenas entender que existem paradoxos e contradições, é necessário amá-los. Não o antagonismo brutal, mas o jogo. Devemos amar a luta, a revolta, a insubmissão. O amor fati é a celebração que os fortes (aqueles que transbordam saúde) fazem à vida. E que dizem “Não” apenas um efeito de seu “Sim” cada vez mais alto! No entanto, sabemos o quanto o amor fati é um pensamento difícil de ser interiorizado e vivido plenamente.
Nascemos em uma crise dos valores, somos inundados pelo niilismo passivo e encontramos extrema dificuldade de afirmar esta realidade como ela é. Não precisamos ficar surpresos, Nietzsche demorou anos também debatendo-se contra este conceito. O caminho para o amor fati é a completa incorporação do pensamento do Eterno Retorno! Daí a mudança de “quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!…“, aforismo de Nietzsche, para “o necessário não me fere; amor fati é minha natureza mais íntima“. Seguimos o mesmo caminho, tal como Nietzsche, temos cada vez mais vontade de dizer “Sim!”. Vontade de estar neste mundo! Vontade de amar o destino! De afirmar o que se afirma.
“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio.
Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores.
Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!“ – (Gaia Ciência, p.161)
- O Eterno Retorno do mesmo como simulacro metafísico
As implicações em aceitar a afirmação do “Eterno Retorno” nos leva inevitavelmente ao conceito de ‘ amor fati’ . Sendo o possível resultado do desafio imposto pelo ‘retorno da vida incontáveis vezes’: representa a plena aceitação da imanência, de um mundo onde Deus está morto.
Apenas aquele que aprende a dizer “Sim!” sobrevive ao niilismo e à falta de sentido, pois consegue tornar leve o mais pesado dos pesos e aprende a impor novos valores, amando a existência em sua plenitude. A afirmação justifica toda a existência, trazendo novos sentidos para este mundo e navegando através das superstições, deixando para trás qualquer transcendência.
O pensamento seletivo do eterno retorno filtra as forças, separa-as entre ativas e reativas. No fundo, não passa de um instrumento ético por onde passa somente o que é afirmativo. Basta lembrar da pergunta: “Quero tudo mais uma vez e incontáveis vezes?“. Nossa vida, tal como a temos vivido até agora é resultado de uma afirmação, de um medo ou de alguma fraqueza pré-estabelecida. Já o amor fati é o resultado desta seleção das forças ativas. Estamos de posse das consequências do eterno retorno para poder afirmar tudo o que é, ou amamos devidamente este mundo a ponto de interiorizamos o amor fati? É impossível afirmar o eterno retorno sem amar a vida, esta vida mesma, como se nos apresenta. A prova do eterno retorno é a mais pesada, a mais difícil, a mais desesperadora, mas como prêmio nos tornamos leves.
“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor-fati: não querer nada de outro modo, nem para diante nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda disseminá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário, mas amá-lo“ (Ecce Homo, capítulo 2)
O Eterno Retorno de Friedrich Nietzsche em minha concepção consegue abarcar uma grande base material para as aspirações de Søren Kierkegaard sobre a questão da
“Repetição”, livro o qual o autor utiliza um pseudônimo , sendo ele “Constantin Constantius”, ao meu ver intitulado como o constante contínuo do instante, momento este presente do tempo da vida. Para espelhar o tema em voga, é visto uma perspectiva genuinamente existencialista do que Nietzsche propunha, sendo assim nada mais justo do que citar o fundador do existencialismo para concluir a ideologia sobre uma outra forma de interpretação singular do simulacro da repetição, que ambos os autores propuseram. Søren pontua de forma firme e coerente o amor da recordação, demonstrando esta afirmação como único método de expressar felicidade genuína.
Nisso tem-se inteira razão, se nos recordarmos de que primeiro faz um homem infeliz.
O amor da repetição é o único feliz, pois tal como o da recordação, não tem a inquietação da esperança, não tem a alarmante aventura da descoberta, mas também não tem a melancolia da recordação, tem sim a ditosa certeza do instante. A esperança é um vestuário novo, rígido, justo e brilhante, porém nunca o envergamos, portanto não se sabe como assentará ou como se ajustará.
A recordação é um vestuário usado que, por belo que seja, não serve, porque não se cabe nele. A repetição é um vestuário inalterável que assenta firme e delicadamente, não aperta nem flutua. A esperança é uma deliciosa fantasia, que se perde quando retomo o olhar a minha realidade; a recordação é uma bela vivência, com quem no entanto nunca se sentiu bem servido no momento que a experienciou; a repetição é o amor de quem nunca se fica farto, porque só do novo se fica farto. Nunca se fica farto do que é velho, e quando se tem o que é velho perante si, fica-se feliz. Só fica plenamente feliz aquele que não se deixa iludir imaginando que a repetição deveria ser algo novo, pois nesse caso fica-se farto dela. É preciso juventude para ter esperança, juventude para recordar, mas é preciso coragem para se querer a repetição. Porque aquele que apenas quer ter esperança é covarde, aquele que apenas quer recordar é voluptuoso, mas aquele que quer a repetição é forte, e quanto mais energicamente for capaz de a tornar clara para si próprio, tanto maior será a sua profundidade como criatura humana. Aquele, porém, que não compreende que a vida é uma repetição e que essa é a beleza da vida, esse condenou-se a si mesmo e não merece melhor fim do que o que lhe acontecerá, ou seja, o plano se sucumbe.
A esperança é um fruto sedutor superficial que não satisfaz, a recordação é algo que não volta mais, uma pobre lembrança que não satisfaz, mas a repetição é o significado extraordinário, que abençoadamente satisfaz. Se um indivíduo rememora sua existência, torna-se a mesma uma grande evidência de seriedade, se tem cora gem para entender que a vida é uma repetição, e assim obter o desejo suficiente para com ela se contentar.
Aquele que não se deixou navegar em busca de análises sobre si antes de começar a viver nunca chegará a viver propriamente, pois aquele que a explorou, e porém ficou insatisfeito, tinha uma fraca constituição, já aquele que escolheu a repetição, esse sim afirma a vida e a vive. Não corre atrás do tempo perdido, nem se põe em segundo plano, pois também é afortunado para vislumbrar as maravilhas do mundo, porque se permite às conhecer. Nem se entristece recordando o passado, antes avança calmamente pelo seu caminho, contente da repetição a qual preserva. O tempo inscreve-se a cada instante um novo texto de suas memórias, o efêmero novo constante da alma. Continua a haver mundo pelo fato de ser repetição. Amadurecer essas ideias o faz enxergar ser-se alguém.
“Na esfera da natureza, a repetição está em sua inabalável necessidade. Na esfera do espírito, a tarefa não consiste em se extrair da repetição uma mudança, e procurar sentir-se mais ou menos bem sob a repetição, como se o espírito estivesse numa relação apenas exterior com as repetições do espírito (segundo as quais o bem e o mal alternavam como verão e inverno), mas a tarefa consiste em converter a repetição em algo de interior na tarefa própria da liberdade, no seu supremo interesse, se ela verdadeiramente pode, enquanto tudo à volta se modificar, realizar a repetição […] o amor que se submeteu à transformação da eternidade em se tornando dever, e ama porque deve amar, é independente, tem a lei de sua existência na própria relação do amor para com o eterno. Este amor jamais pode tornar-se dependente no sentido não verdadeiro, pois a única coisa de que ele depende é o dever, e o dever é a única coisa que liberta. O amor imediato torna um ser humano livre, e no instante seguinte dependente.” (A Repetição, p. 56)
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