A costura tradutória do voto no corpo social: cultura e cidadania

Vito Antico Wirgues

Do voto ao veto, tem-se mais que direitos, vive o gozo, a culpabilidade, o prazer, a pecúnia, a alegria e o próprio sentido democrático de ação poética, paradoxalmente, vê-se isso também, como um meio-sentido abstrato da falta cidadã em utopia, cidadania limite, ou seja, da incompletude ou desigualdade de direitos, existe a tendência ilusória direcionada a uma cidadania plena.
Porém, conduzir o voto como noção plena de direitos é senão, de mesmo modo, desejar a vida e a poética perante uma ideologia pós-colonial de perpetuação de complexos de inferioridade e mazelas sociais. Em outra frente, concluir a plenitude cidadã é atestar que a abstração de uma cidadania deve ser maior que a capacidade de cria-la.
Desse modo: a arte finita da vida cidadã deve-se capaz de traduzir o invisível para a ponte pênsil da realidade material, para a cultura, ou seja, transformar o voto em gambiarra política através do exercício de uma cidadania que perpassa a costura do corpo social, como um caminho de rato que excede o corpo e chega a matéria viva de uma linguagem em pensamento ativo. Voz. É certo que essas questões nos trazem mais perguntas que respostas, problemas que soluções. E é concluso, também, que para a criação ficcional da realidade, atesta-se a consciência de um processo. Para isso, o mito do voto como garantia plena da democracia muitas vezes faz-se traduzido pela participação popular nos movimentos sociais entre o político e o civil, entre o campo e a cidade.
Para efeito de entendimento, o voto não pode ser transubstanciado no sentido de um corpo biológico para um corpo eleitoral, deve ser mais, estar-mais. O poder do voto está na capacidade de tradução do mesmo para aquilo que costumamos denominar “cultura”, ou seja, através daquilo que determinamos cultura, um processo tradutório de micro variantes em costurandança sobre a nossa realidade. Para exemplificação do que está sendo falado, podemos ver o que se sucede após as propagandas eleitorais e as eleições, e tudo o que foi afeito em promessa, acaba em constatação vazia pela fala, voz sem voz, atitude pela casca, como uma atividade de linguagem que não se cumpre, em falta.
Mais: a cidade é vista como semente inorgânica. O concreto, afeito aos diminutivos de ligação. A noção de indivíduo, como potencial eleitor. E a pessoa, ativamente política em seus afetos crentes de títulos em papel às urnas sinfônicas. Enfim, o estado democrático de direito em seu absoluto avesso nos recantos periféricos. E o cadáver requintado dos trópicos, o absurdo surrealista que de nada se pode com este movimento de absurdos latinos, ali, cada vez mais autuado pela bala de encontro ao povo preto, o latifúndio pelo excedente aos povos da floresta, malungos, autóctones, ribeirinhos; e a política neoliberal no esmague aos desvencilhados da crosta material. Em suma: “Não importam as críticas feitas em nomes dos ‘verdadeiros’ princípios democráticos: a democracia se confunde com a eleição”. E o signo democrático, transforma-se em uma enguia desviante daquilo que vive abstratamente ao concreto real, principalmente, quando confrontados pela ótica do ditado de Frei Beto: “A cabeça anda onde os pés pisam”. Agora, de outro modo, para a semiótica de Bakthin, o seguinte ramo:

Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade.

O voto, dessa forma, como índice social inalcançável, torna-se a virada de pensamento do que poderia vir-a-ser, em criação, para o sentido existente de crença maior, transcendência intransponível ou fatal essência subjetiva, isso, em relação aqueles que são considerados errôneos nas camadas infra e super estruturais da sociedade. Ideologias desse tipo são comumente travadas entre a tênue linha existente do RG ao CPF, na partida de mesma confusão entre o cidadão possuidor de alguma garantia e o indivíduo opinante, seja este, deliberadamente alinhado a movimentos de extrema direita, ou velado pelo cabresto em habitus de um cargo-ocupação profissional de importância a determinado meio, carteirada republicana do veto ao voto, característica colonial de herança, de “homens bons” perpétuos e solícitos. 

Para tanto, foi necessária a “gramatização” do errôneo perante a purificação ciliar dos mais nobres, Brasil abstrato, europeizado. Filhos do submundo, excluídos do conhecimento soberano, estavam: “os sem domicílio, os filhos reino, os mecânicos operários, os que vendiam mercadoria ao povo em loja aberta, os degredados, os judeus e outros que pertencessem a classe dos peões, sem esquecer, obviamente, as mulheres e os escravos”. E enquanto os peões de batalha salpicavam as trajetórias em jogos trucados, a bola oito da linguagem cultural, cada vez mais efervescente se canonizava profanamente por um Brasil fractal, jongos, sambas, cocos de roda e capoeiras, também, criminalizados pela forma amarga do celeste bom mocismo, entre outras incorporações terrenas da cultura. Escorregadios em calçadas, cada ora e cada vez, eram as manifestações traduzidas ora e vez mais pela população. O gozo da cultura, o prazer de um des-direito. Mas o voto ainda abstrato, a intelectualidade ainda nevoada. Concretamente para alguns outros “nobres”. “Fogos” de artifício, a contagem dos votos para a Corte de Lisboa em 1821 ou mais um gol beijando a rede no coração corintiano? E o habeas corpus da compreensão cada vez mais fragmentado, morto. Melhor, matado. E revivido. Feiras, gambiarras, centros descentralizados de corpos em artesanias periféricas, artistas de rua, pés calçados, casas coloridas, caminhos ciganos, marreteiros, traduções pedagógicas, becos escoados, ossaturas expostas… De outra forma, qual saída deve ter o voto? Fuga, dança em Baderna dançarina? Cachucha, lundu, umbigada, no chão. Raiz forte. O voto deve ter mais que uma gramática; semântica, sentido. Como nos diz o poema de Manoel de Barros, em tradução livre à pergunta. Deve-se ter imagem para que o nome talhado seja maior que a própria nomeação, deve-se ter o voto costurado e traduzido entre os dias, para que o voto cidadão seja maior que a votação eleitoral. Costuremos.
Ao eleitor:

O rio que fazia uma volta
atrás da nossa casa
era a imagem de um vidro mole…

Passou um homem e disse:
Essa volta que o rio faz…
se chama enseada…

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
(Manoel de Barros, Didática da Invenção)

Será que o voto eleitoral empobreceu a democracia ou vice-versa? 

Para isso, constatamos, que através da cadeia histórica de atuação para chegarmos até esse pacto eleitoral de quatro em quatro anos, entre a forma e o conteúdo de um sistema de eleitorado, políticos, eleitores e cidadãos, o golpe e a garantia soberana nos espreita. Portanto, devemos o manuseio desses pactos para garantirmos a sua estrutura e depositarmos ativamente à forma cotidiana o poder de nossa ação entre os períodos eleitorais, mesmo que ínfima, seja em projetos de bases sociais, políticos, civis ou de forma artística informacional-expressiva; em contrapartida, precisamos da criação poética de um voto eleitoral costurado culturalmente entre a rotina cotidiana, como atividade socio-civil-política em soma barroca (Estado, as mídias, universidades, movimentos sociais, do campo e da cidade, coletivos, sindicatos, produtores culturais, rádios comunitárias, jornais locais…), entre a junção projetiva de trazer as discussões informacionais para a terra, para o solo, polifonia em brincadeira política de telefone sem fio; infelizmente, um espaço, hoje, tomado pela poética das Fake News e da desinformação. Enfim, que votemos cotidianamente ao arranjo tradutório de nossos cédulas sufragistas, voto que pula à boca e concretiza-se culturalmente em linguagem, entre a voz e a política, voto ativo, polinizado. Votemos.

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